"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

NATAL HOJE

Presépio e biblioteca.
O QUE FIZERAM DO NATAL

Natal.
O sino longe toca fino.
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.

As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987). Em Alguma poesia (1930).

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

VÁ E VEJA, 23: JANE AUSTEN

Os personagens Darcy e Lizzi, de "Orgulho e preconceito".
Quatro romances de Jane Austen adaptados para a tevê pela BBC. Quantro obras-primas da literatura em adaptações primorosas em todos os aspectos: roteiro, locações, figurino, direção, atores. São: Emma, Persuasão, Razão e sensibilidade e Orgulho e preconceito, a mais famosa de todas as histórias da autora. Compõem a caixa O melhor de Jane Austen, com oito DVDs, em 773' de trama e 158' de material extra. Lançada no Brasil pela Logon em 2011, infelizmente encontra-se esgotada. A caixa em catálogo, atualmente, traz apenas três histórias: não se sabe por que motivo Persuasão, com desempenho primoroso de Sally Hawkins no papel principal, foi excluída.

Se o espectador não leu os livros, vai se encantar com a descoberta dessas histórias que deram fama à sua autora e são reeditadas, ano após ano, em muitos países e diversos idiomas. Se já leu, vai apreciar "revê-los". Muito do texto de Austen está preservado, especialmente nos espirituosos diálogos, plenos de ironia, e nas ambientações, interiores e exteriores, laconicamente descritas e que as adaptações recriam como se estivessem fazendo aparecer, diante dos nossos olhos, o que a autora pintou com palavras tão fluidas. 

E não há como não se apaixonar por suas heroínas: a carismática Anne Elliot, inteligente, sensível e bondosa, a quem todos dedicam atenção por este ou aquele motivo, mas que precisa e muito lutar para alcançar a plenitude de seus sentimentos; a casamenteira Emma Woodhouse, de temperamento pimenta e já uma feminista convicta, muito embora não o seja nem por pose nem por conveniência, o que é, sem dúvida, uma prova de sabedoria; as irmãs Elinor e Marianne, empobrecidas pela morte do pai e que, diante de um futuro orientado pelas convenções sociais, obrigam-se a opor razão e sensibilidade; e, por fim, a romântica e obstinada Lizzy Bennet, que não admite casar sem amor, por mais rico que seja o pretendente, e vê desfilar diante de si o embate das classes sociais, acirrado pelo desprezo recíproco de nobres e emergentes.

Obviamente que estas adaptações para a tevê de quatro dos melhores romances de Jane Austen não os substituem. Ler é imprescindível, qualquer que seja o ângulo de análise e o argumento que se utilize para apreciá-los ou não. A leitura é sempre uma impressão do autor filtrada pela sensibilidade e experiência de quem lê, e isso é insubstituível. No entanto, é um deleite para o espírito e os olhos assistir a estas aventuras que, verbalizadas literariamente por Jane Austen, transformaram-se em vida através das grandiosas imagens destas adaptações. Saímos renovados de cada uma destas histórias, e mais cientes de quem somos e de como funciona o mundo. E como são belas e verdadeiras! Como pulsam de otimismo e humanidade!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

NO REINO DAS PEQUENAS COISAS

Clique sobre o convite para ampliá-lo.
Denise Gomes-Dias alia ao seu estilo analítico seu pendor para a poesia e a valorização das surpresas que o cotidiano nos oferece e que, não raro, costumamos desprezar. Neste sentido, suas crônicas tanto nos chamam a evocar a partida inesperada de um cão amigo para o plano do insondável quanto nos alertam para que compreendamos, de antemão, a efemeridade deste mundo, que constitui uma simples passagem, uma experiência. Que nos encontremos n'O reino das pequenas coisas, no próximo 22 de dezembro, e comemoremos com a autora mais este passo importante na aventura surpreendente que é a vida!

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

LEITURAS, 49: THOMAS, O IMPOSTOR

Ilustração da capa: Enio Squeff.
No ano do centenário do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), é lamentável que nenhuma editora brasileira tenha se incumbido de reeditar a novelinha Thomas, o impostor, de Jean Cocteau, publicada em 1923 na França e traduzida no Brasil em 1987, pela Rio Gráfica, na sua saudosa coleção Grandes Sucessos da Literatura Internacional. Poética, dinâmica e irreverente, é considerada uma das obras capitais deste multifacetado artista francês, que foi poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, desenhista, pintor etc.

A narrativa concentra-se na figura do fanfarrão Thomas Guillaume, que se faz passar pelo sobrinho do grande general Fontenoy e, com isso, abre portas para si e muitas outras pessoas, tornando-se herói da Primeira Grande Guerra. Na trama, ele transita por muitos lugares, ganha a confiança de uma aristocrata, a senhora de Bormes, conquista o coração desta e de sua filha, Henriette, e faz da Belle Époque o seu palco. A Europa arde em guerra, mas Thomas arde de vida, como se ainda fosse criança e estivesse, em mais uma brincadeira, entre seus companheiros traquinas.

O estilo de Cocteau, de fraseado sintético e repleto de análises daquele mundo que a Guerra sepultou para sempre, seduz o leitor desde as primeiras páginas e o faz esquecer que está diante de um relato de caráter bélico. Acompanhamos as aventuras de Thomas como se este fosse, no fundo e na forma, um inconcebível Quixote do front, presente nas páginas apenas para nos fazer sorrir.

Com tal estratégia, Cocteau termina por nos sugerir, metaforicamente, que a guerra, e em especial aquela, não passa de um capricho, uma aberração que homens supostamente importantes, em seus gabinetes, decidem criar para a ascensão de si mesmos e de suas carreiras, a despeito do infortúnio dos países e das pessoas que representam. A ironia é que, sem esforço nem vontade, nem tampouco qualquer treinamento militar ou intento diplomático, Thomas se torna uma legenda maior que a dos "grandes homens" que fizeram eclodir a guerra. Sua experiência é, como a de todos os combatentes, universal: "A última cortina se levanta. A criança e a fantasia se confundem. Finalmente Guillaume conhece o amor". O front e o amor guardam os mesmos sentimentos. E esperanças.

Ainda teremos quatro anos de "celebrações" ao centenário da Primeira Guerra Mundial. Até o fim deste período talvez alguma editora brasileira decida reeditar esta empolgante obra de Jean Cocteau, uma das primeiras reflexões literárias sobre "a mais cruel das guerras".

terça-feira, 25 de novembro de 2014

CHARLES BUKOWSKI VIVE

Capa da segunda edição.
Neste ano, completaram-se duas décadas desde a morte de Charles Bukowski. Ainda me lembro, e já se vão quase dez anos, de uma "regulagem" que um professor, na UEFS, tentou me dar porque levei alguns contos de Bukowski para minhas aulas de Teoria da Literatura. O motivo foi que os alunos, fascinados, divulgaram os contos entre si e, logo, Bukowski estava sendo lido por um público universitário muito maior do que eu pudesse imaginar. O professor alegava que o polêmico autor não escrevia alta literatura, mas ficção de baixo nível, vulgar e sem nenhum acréscimo ao leitor. Nem argumentei, para uma postura desta natureza não há argumentos. Apenas falei que o mais importante era que os alunos estavam lendo, e se divertindo e tirando algum proveito, porque Bukowski é sempre uma experiência peculiar.

Pois bem, passados tantos anos, Bukowski continua atual e lido ainda mais do que antes. A prova é que seus livros seguem em novas edições constantes, e mais obras vão sendo editadas, ano após ano. Além dos romances, os volumes de contos, sua poesia, que começa a sair na íntegra no Brasil, e não mais em antologias, e até os quadrinhos desenhados por Mathias Schultheiss, que receberam, há quatro ou cinco anos, uma nova edição, reunindo os dois volumes antes publicados, separadamente, pela L&PM, sob os títulos Delírios cotidianos e Nova York, 95 cents ao dia.

Segunda edição, em formato menor.
O artista alemão, muito influenciado por Will Eisner, consegue transpor para os quadrinhos a agilidade e o vigor dos contos de Bukowski, que funcionam tão bem quanto se lidos em sua forma original. E, neste sentido, o gibi constitui, para o público jovem que não conhece o autor, um aperitivo e, para seus fãs consumados, uma nova oportunidade de rever, literalmente, alguns de seus melhores contos, como Kid Foguete no matadouro e Os assassinos, um relato policial de ação à altura dos mais festejados autores do gênero.

Podemos dizer, assim, que estes vinte anos sem Bukowski são, na verdade, vinte anos com um Bukowski mais intenso e presente, pois, de fato, um autor só morre quando deixa de ser lido, e isso parece estar muito longe de acontecer com este escritor, que certa vez disse, no auge de sua consciência: "O anonimato é a dádiva".

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

ABANDONADOS E SEM DONO

Alguém os abandonou, alguém pode ficar com eles.
Gatos abandonados na Ribeira, Salvador, BA, na última sexta-feira, seguem sem donos. São cinco lindos gatinhos, que estão, neste momento, com Camila Baqueiro, responsável já por oito bichanos e que, por isso, não pode ficar com os referidos órfãos. Os interessados pelos "meninos" podem entrar em contato com ela no telefone (71) 8726-6698.
 
"Os gatos consentem que os amemos, pelo que devemos nos sentir agradecidos." (Anne Taylor Brown)

domingo, 9 de novembro de 2014

POETA-POEMA, 63: Joaquim CARDOZO

Futuros pilotos, de Alexander Deineka.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AVES DE RAPINA

Há muitos anos que os caminhos se arrastavam
Subindo para as montanhas.
Percorriam as florestas perseguindo a distância,
Lentos e longos deslizavam nas planícies.

Passaram chuvas, passaram ventos,
Passaram sombras aladas...

Um dia os aviões surgiram e libertaram a distância,
Os aviões desceram e levaram os caminhos.

JOAQUIM CARDOZO (1897-1978). Poeta brasileiro, nascido no Recife, PE. Muito considerado em sua época, hoje é um nome esquecido. Praticou uma poesia livre das amarras formais, indo do soneto ao poema concreto. Foi também desenhista, engenheiro civil, editor e professor. O poema acima está em Poesias completas (Civilização Brasileira, 1979).

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

POETA-POEMA, 62: KÁTIA BORGES

Maternidade, do brasileiro Eliseu Visconti (1866-1944).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

PRÓLOGO

Do pó à pena, poucas léguas.
Letras enfermas, convalescentes,
através dos séculos, em poemas.

Quero, dos homens,
só que não me lembrem.
Ser célebre é construir a lápide
antecipadamente.

Ao final, todos iremos
para os vermes
ou as cinzas,

aquele que imortaliza seu legado
e o que recolhe folhas num parque
e nada deixa em testamento.

KÁTIA BORGES (1968). Poetisa brasileira, nascida em Salvador, BA. Com quatro ou cinco títulos publicados, é seguramente uma das mais promissoras vozes do lirismo atual, estabelecendo um diálogo entre a tradição modernista e os novos tempos. Poema extraído de seu livro de estreia: De volta à caixa de abelhas (Funceb, 2002).

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

NENHUM MODIANO NAS ESTANTES

As capas das edições de Patrick Modiano pela Rocco.

Há algumas semanas, ao saber que tinham outorgado o prêmio Nobel de Literatura 2014 a Patrick Modiano, fiquei duplamente feliz: como leitor e autor. Na condição de leitor, porque acompanho as publicações de Modiano no Brasil desde os anos 1980, e é como se ele, junto a mim e outros leitores, "esculpisse" sem o saber, livro a livro, o ambicionado prêmio; na de autor, sinto-me naturalmente recompensado, porque, de fato, um escritor recebeu o Nobel por fazer Literatura, e não política literária ou por praticar atividades de arredor, usando a Literatura como cabide ou degrau. Prêmio justíssimo, portanto. Continue a ler na revista Diversos Afins.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

POETA-POEMA, 61: FRANCISCO ALVIM

A arte de Romaine Brooks.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AMADA

Recuo de meu dia para ver-te
e a toda claridade que me trazes

Não te busco
Não saberia encontrar-te
Estás onde o acaso te situa
e é a mesma embora outra me apareças
sempre a resgatar-me
com a vida que me vem de tua face

FRANCISCO ALVIM (1938). Poeta brasileiro, nascido em Araxá, MG. Integrou a chamada "geração mimeógrafo", que revelou ao Brasil Cacaso, Leminski e Chacal. Sua estreia se deu em 1968, com o volume Sol dos cegos. Em 1981, a Brasiliense reuniu quase toda a sua poesia em Passatempo e outros poemas, do qual se retirou este madrigal.

sábado, 1 de novembro de 2014

POETA-POEMA, 60: TU FU

Mais um espécime da arte do chinês Zhao Wuchao.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

POEMA DE TU FU A LI PO

Tu escreves como o pássaro canta. Teu gorjeio? Versos.
Se não cantasses, as manhãs seriam menos vermelhas e
os crepúsculos menos azuis.

Quando a embiaguez te inspira, os Imortais inclinam-
se das nuvens para te escutarem, o tempo suspende seu
voo, o bem-amado esquece a bem-amada.

Tu és o Sol e nós, os outros poetas, somos apenas es-
trelas.

Acolhe, ó meu amigo, o balbucio do meu respeito!

TU FU (712-770). Poeta considerado o mais perfeito que a China produziu. Sua arte era inovadora e espelhava seu caráter: austero, reto, exigente. Este poema subverte a ideia de que grandes poetas não admiram nem elogiam seus pares. Mais uma vez a tradução é de Cecília Meireles, do livro Poemas chineses (Nova Fronteira, 1996).

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 59: LI PO

A arte do pintor chinês Zhao Wuchao.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

A DANÇA DOS DEUSES

Pus toda a minha alma numa canção
que cantei para os homens. E os homens se riram!

Tomei meu alaúde, fui sentar-me no topo de uma montanha
e cantei para os deuses a canção que os homens
não tinham entendido.

O sol baixava. Ao ritmo da minha canção, os Deuses dançaram
nas nuvens encarnadas que flutuavam no céu.

LI PO (701-762). Poeta chinês, traduzido aqui por Cecília Meireles. Além de poeta exímio, foi espadachim e beberrão contumaz. Sua facilidade para escrever era exaltada por outros poetas. Reza a lenda que morreu afogado tentando abraçar a lua. Tradução extraída de Poemas chineses (Nova Fronteira, 1996).

domingo, 26 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 58: D. H. LAWRENCE

Voo, aquarela de Philip Jamison.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O MOSQUITO SABE

O mosquito sabe, embora sendo tão pequeno,
que é um bicho de rapina.
Mas pelo menos
ele apenas enche a sacola,
não bota meu sangue no banco.

D. H. LAWRENCE (1885-1930). Romancista, contista ensaísta e poeta inglês. Autor d'O amante de Lady Chatterley, um dos romances mais polêmicos do século XX. Sua excelência como prosador ofusca-lhe o valor como poeta. Seus animals poems, irônicos a toda prova, são muito conhecidos e cultuados. A tradução aqui é de Jorge Wanderley e está em 22 ingleses modernos (Civilização Brasileira, 1993).

sábado, 25 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 57: MURILO MENDES

Parque de Luxemburgo (1905), de Eliseu Visconti.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

MODINHA DO EMPREGADO DO BANCO

Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos pra não fazerem nada com eles.

Também se o Diretor tivesse a minha imaginação
O Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

MURILO MENDES (1901-1975). Poeta brasileiro, nascido em Juiz de Fora, MG. Um dos mais importantes do nosso vernáculo, mas também um dos mais subestimados. Participou da grande renovação que o Modernismo promoveu em nossas letras, com seu estilo singular, de tom a um só tempo solene e jocoso, unindo coloquialismo e imagens suprarreais. O poema acima está em Poemas (1930).

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 56: DRUMMOND

Serenata, de Cândido Portinari.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter um ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987). Poeta, contista e cronista brasileiro, nascido em Itabira, MG. Foi um dos maiores e sempre o será, ao lado de quatro ou cinco poetas do idioma. Sua capacidade de variação de motivos e de fusão do literário com o coloquial impressiona até hoje. Poeta único, profuso e imprescindível. O poema acima, de Alguma poesia (1930), foi extraído de Nova reunião (Best Bolso, 2011).

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 55: JULIA P. FARNY

A noite estrelada (1889), de Van Gogh.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

VI

E, um dia, será o fim. O fim incerto:
as selvas arderão, pira selvagem,
será o fácil momento da pilhagem,
a hora do terror, do desconcerto.

As naves vagarão no mar aberto,
sucumbirão cidades na voragem.
Rasgar-se-ão as virgens, farão viagem
de fuga as caravanas ao deserto.

E, então, será o fim: nos ares, langue
rumor de enxame, olor de mirto e sangue
e um estalar crescente de querelas,

crispadas mãos, bocas em fogo, pranto.
Além, no irado céu, prossegue, entanto,
a marcha inexorável das estrelas.

JULIA PRILUTZKY FARNY (1912-2002). Poetisa argentina, nascida na Ucrânia, e exímia sonetista. Sua principal obra, Antología del amor (1977), inédita no Brasil, ultrapassou vinte edições em 1993, chegando a mais de 200 mil exemplares, algo realmente incomum para um livro de poesia.  O soneto acima, extraído daquela obra, foi traduzido por Anderson Braga Horta, em seu livro Traduzir poesia (Thesaurus, 2004).

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 54: Edwin ROBINSON

A pintura de Bob Dylan.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

RICHARD CORY

Quando Richard Cory vinha à cidade
            Nós todos o olhávamos, nós gentios:
Era um completo senhor, na verdade,
            Tão bem dotado, imperial e esguio!

Era discreta a roupa que escolhia
            E era sempre humano quando falava;
Mas alterava os pulsos, seu "bom-dia",
            E ele esplendia, quando caminhava.

Como um rei, era rico! E todo encanto,
            Toda virtude lhe era conhecida:
Para nós, em resumo, tinha tanto,
            Que bem queríamos viver-lhe a vida.

Assim seguimos, maldizendo o pão
            Como quem só deseja que amanheça...
E Richard Cory, em noite de verão,
            Matou-se com uma bala na cabeça.

EDWIN ARLINGTON ROBINSON (1869-1935). Poeta estadunidense, muito popular nos anos 1920, quando foi considerado o "maior" do seu país. Richard Cory é o seu poema mais célebre, algo assim como a Canção do Exílio para nós brasileiros. A tradução é de Jorge Wanderley, extraída da Antologia da nova poesia norte-americana (Civilização Brasileira, 1992).

terça-feira, 21 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 53: Eugênio de CASTRO

Gustav Klimt pintava o tempo através das pessoas.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SOMBRA E CLARÃO

De mãos dadas, lá vão avó e neta,
A Saudade e a Esperança de mãos dadas!
A neta é loira, a avó tem cãs prateadas,
Uma leva a boneca, outra a muleta.

Uma arrasta-se e a outra salta inquieta;
Aos suspiros vai uma, outra às risadas;
A avó desfia contas desgastadas,
E a neta colhe iriada borboleta.

Uma vai confiada, outra bisonha;
Uma lembra-se, triste, e a outra sonha;
Leves asas tem uma, outra coxeia...

E eu, que as vejo passar, com mágoa infinda
Penso que a avó talvez já fosse linda,
E que a neta, que é  linda, há de ser feia!

EUGÊNIO DE CASTRO (1869-1944). Poeta português, um dos nomes estelares do Simbolismo, muito embora jamais tenha conseguido chegar a ser um poeta popular. Foi também editor, responsável pela revista Arte (1895-97). O soneto acima, que integra o volume Descendo a encosta (1924), é possivelmente um dos mais belos e perfeitos da língua portuguesa.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 52: SOPHIA DE MELLO

Arredores de Moscou, em novembro de 1941 (1941), de Alexander Deineka.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O SOLDADO MORTO

Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há-de beijar ninguém.

Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão, de impulso, de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera.
que dividida na tarde se dispersa.

E a luz, as horas, as colinas
São como pranto em torno do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1919-2004). Poetisa portuguesa. Talvez forme com Cecília Meireles e Florbela Espanca a tríade de excelência da poesia feminina do vernáculo. Fartamente musical, lírica e com imagens surpreendentes, sua poesia inebria o leitor sem jamais fatigá-lo. O poema acima consta da Antología poética (Huerga & Fierro, 2000), bilíngue espanhol-português.

domingo, 19 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 51: TOMLINSON

The chemin, de Alfred Sisley.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AQUEDUTO

Que ele se erga
Um hóspede de pedra
Numa terra inóspita,
A sua fala, a fala da fonte,
Voz da nascente descerrada,
De onde transporta
Seu próprio sustento. A sua graça
Tem de igualar
A força da corrente,
E que o tom
De flauta das águas
Inunde de suaves avisos a pedra da conduta.

CHARLES TOMLINSON (1927). Poeta inglês, dos mais admirados da atualidade. Seu estilo, sóbrio e elegante, permite que ele passeie por qualquer assunto, como o do poema acima, traduzido por Gualter Cunha, em Poemas (Cotovia, 1992). Não raro sua poesia reflete sobre os meandros do fazer poético, e é então que seu pensamento transborda de originalidade.

sábado, 18 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 50: Oliverio GIRONDO

A arte onírica do pintor argentino Xul Solar.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

MITO

MITO
meu mito
acorde de lua sem pijamas
ainda que me afundes tuas espinhas psíquicas
mulher pescada pouco antes da morte
aspirossorvo até o delírio tuas magnólias calefaccionadas
quanto decoro teu luxuosíssimo esqueleto
todos os acidentes de tua topografia
entretanto declino em qualquer tempo
tuas titilações mais secretas
ao precipitar-te
entre relâmpagos
nos tubos de ensaio de minhas veias

OLIVERIO GIRONDO (1891-1967). Poeta argentino, equiparado em gênio a Jorge Luis Borges, mas, em estilo, ambos são diametralmente opostos, qualquer que seja o critério de comparação. Foi uma das vozes renovadoras da poesia durante as vanguardas latino-americanas. O poema acima é do tardio A pupila do zero (Iluminuras, 1995), cuja edição original, sob o título En la masmédula, é de 1954. A tradução é de Régis Bonvicino.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 49: JOYCE KILMER

Cap Cod evening (1939), de Edward Hopper.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

ÁRVORES

Sei que nunca verei um poema mais belo e ardente
Do que uma árvore; uma árvore que encerra
Uma boca faminta, aberta eternamente
Ao hálito sutil e flutuante da terra.
Voltada para Deus todo o dia, ela esquece
Os braços a pender de folhas, numa prece.
Uma árvore que, ao vir do estio morno, esconde
Um ninho de sabiás nos cabelos da fronde.
A neve põe sobre ela o seu níveo diadema
E a chuva vive na mais doce intimidade
Do tronco, a se embalar nos galhos seus;
Qualquer néscio como eu sabe fazer um poema.
Mas quem pode fazer uma árvore? Só Deus.

JOYCE KILMER (1886-1918). Poeta, jornalista e crítico estadunidense. Seu livro mais conhecido é Árvores e outros poemas (1914), capitaneado pelo poema acima, célebre e soberbamente traduzido para o português por Olegário Mariano, que o deixou tão belo quanto no idioma de origem. Kilmer, cujo nome principal era Alfred, morreu na segunda batalha do Marne.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 48: Anton BUTTIGIEG

Pôr do sol em Roma, de Maja Wronska.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AS NOITES ROMANAS

Recordo um inverno em Roma
quando jazias já sem forças
pela doença incurável;
noites de chuva pingavam sobre as folhas,
noites de lágrimas caíam sobre meu coração.
E ao amanhecer as folhas mais verdes,
ao amanhecer meu coração mais árido.

ANTON BUTTIGIEG (1912-1983). Poeta e estadista maltês, que chegou a ocupar a presidência de seu país de 1976 a 1981. Distinguiu-se na lírica especialmente com o excelente O mar de Malta, traduzido para o italiano em 1974 e depois para o português, pela Expressão e Cultura, em 1982, edição da qual se extraiu a tradução acima, assinada por Marli de Oliveira.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 47: VICENTE GERBASI

Catarse (1934), mural de José Clemente Orozco.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

PENUMBRAS SECRETAS

Encontrei a desdita ao amanhecer,
em um cavalo que sangrava
com a cabeça um pouco caída na erva
e o pranto de minha irmã de dois anos
que havia sido operada no ventre.

Senti um pouco de sangue nas mãos,
uma dor triste como um cabrito degolado,
uma pele posta a secar sobre as pedras.
Andei pelo ar frio das últimas estrelas
onde moravam galos dispersos,
e senti minha própria presença
na árvore iluminada no fundo da casa.

O dia acolheu o cavalo ferido
com o pranto de minha irmã nos olhos.
O dia me recluiu nos rincões escuros.
Segui sendo um triste que espanta as moscas da tarde
ou desenha uma igreja rodeada de aves marinhas.

VICENTE GERBASI (1913-1992). Poeta venezuelano. Estreou com Vigília do náufrago (1937) e, aos poucos, foi se consolidando como uma das mais importantes vozes líricas da América Hispânica. O Brasil tomou contato mais estreito com sua poesia através do volume Os espaços cálidos (Nossa América, 1988), do qual se extraiu a tradução acima, de autoria de Cleto de Assis.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 46: JOSÉ PAULO PAES

A sesta (1869), de Jacques Adrien Lavieille.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

CÚMPLICES

Quebrei minhas algemas contra o espelho
E a teus olhos tracei-me nova imagem,
Sem cólera, sem armas, sem viagem.

Agora sou apenas teu reflexo,
Um fantasma sem brilho e sem escadas.
O que fui pouco importa. É quase nada.

Desprezei os ardis, a ironia,
As mentiras de bronze, as vozes fátuas,
O fascínio enganoso das estátuas.

Ergo-me pobre e nu contra o horizonte.
Nenhum crepúsculo turva minha fronte.
Sob um cipreste enterrei os meus defuntos.

Atrás de mim ficou o espelho fútil.
Além de mim descubro céus inúteis.
Mas que importa o caminho? Estamos juntos. 

JOSÉ PAULO PAES (1926-1998). Poeta, tradutor, ensaísta e editor brasileiro, nascido em Taquaritinga, SP. Como tradutor de poesia, poucos se lhe ombreavam; como poeta, era puro estilo, variação, experimento, humor; como ensaísta, tinha a seu favor a inteligência, a contenção e a generosidade. O belo poema acima está em Um por todos (Brasiliense, 1986), que reúne toda a sua poesia até então.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 45: MYRIAM FRAGA

O andarilho, de George Grosz.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

TERROR

Esta é a lei
Que me deram,
Lei de cão.

Dente por
Dente,
Sinal de Talião.

Me botaram na praça
Nu
E pássaros
Vinham bicar-me
O ventre.

E arrancaram-me as unhas
E os segredos
E vieram outros pássaros
Rapaces
E me roeram os dedos.

Hoje o ódio é o melhor
Que me consentem.

Vou explodir um mapa
Cheio de gente.

MYRIAM FRAGA (1937). Poetisa brasileira, nascida em Salvador, BA. Lírica, diversa e sempre atenta às possibilidades poéticas, transita por experimentações constantes, como confirma o poema acima, de assunto indigesto, mas de uma atualidade extrema: o terror sempre tem uma causa, é a consequência, a reação a um ato, um procedimento. Poema inserido em As purificações (Civilização Brasileira, 1981).

domingo, 12 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 44: MÁRCIA MAIA

A morte, por Walter Sickert (1860-1942).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

FOTOGRAFIA

à beira da estrada
um cemitério

cruzes enfeitadas com
coroas de primeira-comunhão

inocência estendida entre
as lápides

num misto de saudade e
decomposição

MÁRCIA MAIA (1951). Poetisa brasileira, nascida no Recife, PE. Estreou em 2001, na revista Poesia Sempre, número 15, da Biblioteca Nacional. Em livro, em 2003, com Espelhos. O poema acima está no volume Em queda livre (Bagaço, 2005).

sábado, 11 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 43: ÂNGELA VILMA

Amantes, de René Magritte.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AMOR

Não existes, mas sinto teu sopro
no meu rosto, como o vento

e penso os sonhos do mundo
e canto as valsas do tempo

Não existes. Como miragem
desapareces quando te chamo

Mas sinto teu hálito quente
perdido, nesse abandono

ÂNGELA VILMA (1967). Poetisa brasileira, nascida em Andaraí, BA. Lírica como poucas de sua geração, capaz de embalar o leitor e aprisioná-lo em seus versos, canta o amor, sua falta ou sua impossibilidade de um modo que só Cecília Meireles alcançou em nosso idioma. O poema acima está em Poemas para Antônio (P55, 2010).

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 42: DANTE MILANO

A "irrealidade" de Pablo Picasso.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

GLÓRIA MORTA

Tanto rumor de falsa glória,
Só o silêncio é musical.
Só o silêncio,
A grave solidão individual,
O exílio em si mesmo,
O sonho que não está em parte alguma.

De tão lúcido, sinto-me irreal.

DANTE MILANO (1899-1991). Poeta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro. Era retraído e alheio ao grande público. Sua poesia é exata, melancólica, num tom existencialista que não faz concessão à esperança: "Tudo é exílio", sentencia. Um dos maiores poetas da língua portuguesa e, claro, do mundo. Poesia e prosa (Civilização Brasileiea-UERJ, 1979) é um livro indispensável.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 41: EDNA S. V. MILLAY

Manhã, de Edvard Munch.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SONETO

O amor não é tudo: nem carne nem
bebida, nem é sono, lar da gente,
nem a tábua lançada para quem
se afunda e volta e afunda novamente.
O amor não pode encher o pulmão forte,
pôr osso no lugar, tratar humores,
embora tantos deem a mão à morte
(enquanto o digo) só por desamores.
Bem pode ser, na hora mais doída,
ou da minha franqueza arrependida,
buscando alívio à dor, seja capaz
de vender teu amor por minha paz
ou trocar-te a lembrança pelo pão.
Bem pode ser que o faça. Acho que não.

EDNA ST. VINCENT MILLAY (1892-1950). Poetisa estadunidense das mais cultuadas. Estreou com Renascence and other poems (1917), livro que a tornou célebre e apreciada. Sua poesia é a de uma virtuose de sua matéria, pois não abre mão da técnica apurada, da beleza lírica e da exatidão sintática, mescladas estas a um tom de ironia e, não raro, de cinismo. A tradução aqui é de Paulo Mendes Campos e está em Trinca de copas (Achiamé, 1984).

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 40: GREGORY CORSO

Summer interior (1909), de Edward Hopper.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SUICÍDIO NO GREENWICH VILLAGE

Braços distendidos
as mãos espalmadas contra a armação da janela
Olha para a rua 
Pensa em Bartok, em Van Gogh
Em cartuns na New Yorker
Ela cai

Eles a levam embora com o Daily News cobrindo o rosto
E o dono de armazém atira água quente pela calçada

GREGORY CORSO (1930-2001). Poeta estadunidense. Foi um dos capitães da lírica do movimento beat e é, possivelmente, um de seus poetas mais criativos, em especial quando se detém a olhar, poeticamente, a realidade urbana, como no poema acima, inserido em Gasolina & Lady Vestal (L&PM, 1985), com tradução de Ciro Barroso.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 39: UMBERTO SABA

La France Croisée (1914), por Romaine Brooks.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

A CABRA

Conversei com uma cabra.
Estava sozinha no campo, amarrada.
Saciada de capim, banhada
de chuva, balava.

Seu balido era irmão
da minha mágoa. E respondi-lhe, primeiro
brincando, depois porque a dor é eterna,
tem uma voz e não se altera.
Esta voz ouço
gemer numa cabra solitária.

Numa cabra de cara semita
ouço o lamento de todas as outras dores,
de todas as outras vidas.

UMBERTO SABA (1883-1957). Poeta e prosador italiano. De origem judaica por tronco materno, expressa em sua poesia o horror antissemita, como atesta este poema, traduzido por Paulo Mendes Campos, em Trinca de copas (Achiamé, 1984). Os trechos em itálico foram inseridos por mim, conforme o original italiano, presente no volume Pasolini e i moderni (Tascabili Bompiani, 1983).

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 38: LAFORGUE

A arte de Juarez Machado.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

LOCUÇÕES DO PIERROT X

Longe está meu tipo,
Que me disse adeus,
Pela falta, em meus
Olhos, de princípios!

Ela, no momento,
Ela, um doce e tanto,
Pode estar gerando
Um reles rebento.

Pois caiu nos braços
De um senhor de classe,
Próprio para o enlace,
Mas de gênio escasso.

JULES LAFORGUE (1860-1887). Poeta francês dos mais influentes, que passou como um cometa pela vida, deixando uma renovação definitiva na poesia de seu país e do mundo. Os modernos lhe devem muito, por suas experimentações e seu humor. A tradução aqui é de Régis Bonvicino e está em Litanias da lua (Iluminuras, 1989).

domingo, 5 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 37: LAMARTINE

Camille et Bazille (1865), de Claude Monet.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O LIVRO DA EXISTÊNCIA

O livro da existência é o livro soberano
Que não se pode, ao léu, abrir, fechar de novo;
O trecho mais feliz não se lê duas vezes,
E a página fatal é virada sozinha;
Seria bom voltar à folha em que se amou
E o dedo está passando a folha em que se morre.

ALPHONSE DE LAMARTINE (1790-1869). Poeta francês. Um dos grandes nomes do Romantismo que legou ao mundo Hugo, Nerval, Musset, Gauthier e Baudelaire. Mal publicado no Brasil, seus poemas só se encontram em antologias, nas quais este é o mais frequente. A tradução é de Cláudio Veiga e está na maravilhosa Antologia da poesia francesa (Record, 1991).

sábado, 4 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 36: CARLOS BARBOSA

Natureza morta, de Marie Laurencin (1883-1956).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SOBRE TUDO E NADA

o livro sobre nada repousa sobre a cama
feito um pássaro de asas abertas
paradoxalmente preso ao lençol

espera pelo olhar malino
da leitora que o devasse

o livro sobre nada é tudo
que resta daquela noite

CARLOS BARBOSA (1958). Poeta e prosador brasileiro, nascido em Oliveira dos Brejinhos, BA, autor do romance A dama do velho Chico (Bom Texto, 2002). O belo poema acima, com suas sedutoras assonâncias e a ocultar seu fato mais importante, consta de Matalotagem e outros poemas da viagem (Funceb, 2006).

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 35: GOETHE

Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O MAIS PRODIGIOSO LIVRO DOS LIVROS

O mais prodigioso livro dos livros
É o livro do amor.
Lendo-o com atenção fui encontrando,
De alegria, poucas páginas,
Cadernos repletos de dor;
Um só parágrafo marca a cisão.
Do reencontro?! Um diminuto capítulo,
Fragmentos... Volumes inteiros de aflição,
Alongados, desmesurados,
Infindos de tanta explicação.
Ai! Nisami o final é que vale:
A trilha achaste também.
Quem dissolve o que é insolúvel?
Os amantes que se reveem.

JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832). Mais do que poeta e prosador, Goethe era toda uma literatura. Raros são os escritores que atingem o seu patamar. Sua influência chega aos quatro cantos do mundo. Na poesia, no romance, no ensaio, ele foi imenso em todos os gêneros. O extraordinário poema acima foi recolhido de Amor, paixão e ironia (Civilização Brasileira, 1995), selecionado e traduzido por Flávio Meurer.