"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O IPTU ABUSIVO DE SALVADOR

Foto de Salvador: por Dom Mauro Morelli, em seu blog.
O prefeito de Salvador, ACM Neto, ao que parece decidiu punir o Vitória por continuar na Série A: subiu o IPTU do Barradão de 300 mil para 3 milhões!
 
Bem, humor à parte, estamos todos, em Salvador, pagando taxas de IPTU abusivas. Quem pagou em 2013 em torno de 280 reais, vai pagar este ano quase 600!
 
E a cidade continua a mesma: suja, atravancada de camelôs, com engarrafamentos quilométricos, abarrotada de casarões centenários com as marquises prestes a cair (dê uma voltinha no Comércio, mas não esqueça de levar o capacete e rezar para o Senhor do Bonfim), praças infestadas de drogados a pedir esmolas ou roubando, descaradamente, nas barbas da polícia, restaurantes com banheiros sem luz, às vezes sem água, seguramente sem papel nem sabão, e inúmeros estabelecimentos de comércio alimentício sem nenhuma higiene, com mesas e cadeiras que invadem a rua e impedem a passagem dos transeuntes. Dia desses, numa farmácia, peguei o seguinte diálogo entre duas balconistas:
 
"Você conhece aquela padaria... Que serve almoço..."
"Sei qual é."
"Ontem, encontrei uma barata no pudim."
 
Sem falar da Estação da Lapa, o mais importante terminal rodoviário urbano de Salvador. Além da sujeira e do Bar a Céu Aberto do Neto, é tiro, água de esgoto correndo, camelôs que se espalham em todo o local e tornam o entorno imundo, tapumes que obstruem a visão e escondem, adequadamente, os ladrões, que, com isso, agem mais à vontade, e alguns policiais, inoperantes, que acham tudo isso muito natural.
 
Somos quase 3 milhões de habitantes em Salvador, mas, estranhamente, não somos servidos por trens urbanos, transporte comum em qualquer grande capital do país; temos um metrô que não passa de um fantasma ou um delírio; e os ônibus, os ônibus... Esqueça-os! Se você não vai para muito longe, vá a pé, é mais limpo, rápido e mais saudável, mas cuidado com os buracos: a prefeitura costuma esburacar a cidade toda para o carnaval, e os buracos utilizados num ano são os mesmos do ano seguinte, acrescidos de novos.
 
É esta cidade que vai ser uma das sedes da Copa do Mundo de Futebol.
 
Depois de 2014, a FIFA só vai pensar em Copa na Europa, nos EUA e na Ásia. Aliás, Copa do Mundo de Futebol, pelo que representa e pelo quanto movimenta, em dinheiro e pessoas, deveria ser realizada apenas por países de Primeiro Mundo, o que estamos longe de ser. Especialmente na Bahia.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O GOL ESQUECIDO

Este livro deveria ter sido lançado em 2011. Mas, como é dedicado a minha mãe, por motivos óbvios e que o leitor há de compreender, e ela acabou falecendo naquele ano, não tive muita animação para tocar o projeto e demorei mais de seis meses, se não um ano, para reenviar as provas ao editor. Bem, quase três anos se passaram e, afinal, o livro vem a público, num período mais do que adequado ao seu tema, pois, em menos de cinco meses, estaremos em plena Copa do Mundo de Futebol. Se nada der errado, e espero que não, marcaremos mais esse gol em março ou abril, com o lançamento.

A Girafa é uma das editoras que integram o Grupo Editorial Escrituras, que publicou ano passado o meu romance Os encantos do sol.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

VÁ E VEJA 21: TRILOGIA DA VIDA

Gabriele Muccino é, sem dúvida, um dos melhores cineastas italianos da atualidade, ao lado de Gianni Amélio, Gabrielle Salvatores, Silvio Soldini, Emanuele Crialese e Giovanni Veronese, que continuaram, e até refinaram, a massa de filmes contundentes, realistas e sensíveis que são o legado do período que vai de Luchino Visconti a Giuseppe Tornatore. Pelo meio estão Pier Paolo Pasolini, Giuseppe de Santis, Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Mario Monicelli, Valerio Zurlini, Dino Risi, Franco Zeffirelli, Bernardo Bertolucci, Ettore Scola, só para citar os mais conhecidos.
 
Atento aos cineastas que o precederam, e visivelmente imbuído de renovação, Muccino consegue, em pelo menos três filmes, inspirar-se na tradição do cinema de seu país, que não é pequena, e, ao mesmo tempo, renová-la. Os três formam uma espécie de "Trilogia da Vida". São: Para sempre na minha vida (1999), O último beijo (2001) e No limite das emoções (2003).
 
No primeiro, o período da existência abordado é a adolescência, sempre rebelde e em busca de horizontes, especialmente quanto às relações amorosas. Estudantes decidem tomar a escola pública em que estudam e o fazem. Mas as questões políticas e suas reivindicações são apenas um pretexto, embalado por vídeos p&b dos anos 1960 e canções revolucionárias. O que importa, de fato, é sentir-se vivo, atuante e, além disso, conseguir, em meio ao caos instaurado, algum amor. É o que move as pessoas, e é o que fez a humanidade sobreviver. Tudo o mais é anexo. Não há fato da história humana que seja mais doloroso que a perda no amor. Nem mesmos os comunistas resistem a um rosto e um corpo bonitos.
 
Em O último beijo, os personagens, embora não sejam os mesmos, poderiam ser. A faixa etária é, agora, a dos trinta anos. Foi-se a adolescência, foram-se a rebeldia e as paixões, esvaiu-se o desejo de mudar o mundo. A tudo isso seguiram-se o casamento, o trabalho, os filhos, a morte em família, a separação dos país, o sentimento de nulidade, o vazio existencial e o desejo de que os grandes tempos voltassem. Uma paixão, súbita, não é mais avassaladora, torna-se fugaz, uma experiência apenas, pois as responsabilidades proclamam um comportamento mais adulto, e a família, o trabalho, os filhos vêm em primeiro lugar. O grande desafio não é ser outro, mas ser o mesmo, conservar-se ao lado do cônjuge, quaisquer que sejam os problemas. O desfecho, irônico, restaura o equilíbrio, ao passo que nos diz que somos, em se tratando de amor e sexo, todos iguais. Destaque para o desempenho de Giovanna Mezzogiorno, que interpreta a esposa grávida que não tolera um único deslize do marido.
 
No limite das emoções concilia os dois filmes anteriores. A faixa do casal de protagonistas é agora a dos 40-50 anos. Mas, deles, uma nova geração emerge, os filhos, na faixa dos 17. Enquanto os pais arrastam-se numa crise que parece insolúvel e levará, inevitavelmente, à separação, os filhos (um casal) despontam para a vida, rebeldes e atuantes. A garota quer entrar para a tevê e ser uma estrela, e tudo faz para conseguir isso. O rapaz, apenas encontrar uma namorada e fazer amigos fiéis. O pai revê uma antiga namorada, paixão que deixou marcas, e a mãe entra para o teatro, retomando uma de suas grandes paixões interrompidas: a arte de interpretar. Ou seja, todos estão apaixonados, ou por um ser ou por uma causa. Laura Morante é o grande destaque entre os atores. Metáfora de si mesma na narrativa, ela vive, não interpreta. Não se pode separar a personagem da atriz.
 
Se o tema dos três filmes é a vida, conciliando gêneros como a comédia, o drama e o melodrama, o ritmo, no entanto, é de filme de ação, de aventura. E aqui está uma das grandes contribuições de Muccino. A condução narrativa é frenética, com cortes bruscos e intensa movimentação no tempo e no espaço. Correria o tempo todo. Há, de certo modo, um frenesi de viver, o que tanto intensifica a vida quanto a esvazia de experiências. Nem sempre mais é melhor. Mais vale uma experiência lenta e proveitosa que várias, em caudaloso fluxo, das quais ficam somente esboços, pálidas imagens. Não seria demais sugerir que o diretor, também roteirista, solicita que atentemos para a vida que estamos vivendo, rarefeita e diluída, imersa numa velocidade que não nos deixa ser quem somos. Ou o permite apenas em parte, na superfície.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

DESAPARECIMENTOS

Hiroxima, depois que a Bomba a fez "desaparecer", em 1945.
Recebi, do escritor Carlos Barbosa, um e-mail com um texto (de autoria desconhecida) afirmando que nove "coisas" desaparecerão de nossas vidas nos próximos anos. São: o correio, o cheque, o jornal (impresso), o livro (impresso), o telefone fixo, a música, a televisão, os bens pessoais físicos, a privacidade.

Faltou ao autor do texto admitir que ele próprio vai desaparecer, como tudo e todos no Universo. Ora, não sei qual o assombro com relação a estes supostos desaparecimentos, nem tampouco a novidade. Se até Roma, que era o império dos impérios, desapareceu. Se até os dropes Dulcora, que eram como poeira nas vitrines das bonbonnières dos cinemas de antigamente, desapareceram. Epa, a palavra "bonbonnière" também desapareceu, do português brasileiro! E igualmente os cinemas de antigamente.

Volta e meia, aparecem na internet esses textos sem autoria, pregando originalidade, terror ou pessimismo. Já até acabaram com o mundo, duas ou três vezes. E mataram antecipadamente algumas pessoas, sempre célebres. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", já dizia Camões. Nada é perene, e mesmo o homem só o é, "temporariamente", enquanto espécie. Nenhuma novidade, portanto. Nenhum assombro: eu estou morrendo, você está, todos estamos. Somos desaparecimentos em curso. "Desde o instante em que se nasce já se começa a morrer". Cassiano Ricardo, poeta desaparecido.

O melhor a fazer é não dar atenção a esses textos sem autor. São o que há de mais execrável, tanto em ideias quanto em forma. E não servem mesmo para nada, nem sequer para nos tirar o sono.

Num dos melhores contos de Machado de Assis, que provavelmente o autor desconhecido não lê (verbo no presente, porque a leitura de literatura é sempre releitura), Deus volta-se para o Diabo e diz que, se ele não pode ser original ao escrever, que não escreva. Sábio conselho, que a Legião não logra seguir. Eu, inclusive. Laus Deo!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

LEITURAS 39: AS PERNAS DE ÚRSULA



Primeira edição: Agir, 2006.

Num restaurante, enquanto janta em companhia da esposa, do filho recém-nascido e de um casal de amigos, Eduardo entrevê as estonteantes pernas de uma desconhecida... É então que tem início a sua odisseia. Ao mesmo tempo que rememora sua vida com a esposa, Alice, como a conheceu e se casaram, ele peregrina em busca de reencontrar e possuir Úrsula, a proprietária daquelas maravilhosas pernas. Longe de ser uma repetitiva história de traição conjugal, ou um simples episódio de sedução, As pernas de Úrsula se insere na tradição dos relatos de conteúdo sensual ou erótico que os iluministas consideravam obras de autoconhecimento. Ao experimentar desejos irrefreáveis por outra mulher, e abdicando, de imediato, de qualquer sentimento que não o de apenas a possuir, estar entre aquelas pernas, o protagonista se conhece e se aceita, para ao fim chegar a uma conclusão a que as pessoas, em geral, viram as costas ou procuram relevar: de que, muitas vezes, ama-se não a pessoa, mas o amor, a chance ou a possibilidade de “fazer amor”. No restante dos casos, prevalece a idealização romântica. Que não passa de teatro do mundo.
 
Publicado originalmente na Verbo21.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

LEITURAS 38: MARCE


Foto: Stephanie Wicks por Kim Guerra.
O que se espera de qualquer romancista é que ele nos apresente um mundo que só ele conhece e que, doravante, também nos será íntimo. Não interessa se no presente, passado ou futuro do mundo. Ou até mesmo nos três tempos, simultaneamente. O mais importante é que o autor nos convença da existência daquele instante e daquele lugar. Isso Gláucia Lemos obtém, com sobras. Seu romance Marce (Solisluna, 2013), subintitulado Espelho chinês, é um preciso exemplo de universo específico romanceado. Narra a história da personagem-título, que, depois de 26 anos longe, volta ao solar da família para, entre a irmã, os primos e os tios, participar da leitura do testamento de sua tia Elaine, que a criou e à irmã, depois da morte de seus pais. Ovelha negra, ela não espera nada dos parentes e conta sua história, passada e presente, com o intuito de expurgar suas feridas e se redimir de si mesma. O cenário é de cidade pequena; o clima, chuvoso; e os personagens, sem qualquer maniqueísmo por parte da autora, alternam os estados de ânimo que são o fundo e a forma de todas as pessoas: simples seres humanos, com qualidades elogiáveis e equivalentes defeitos, alguns bem terríveis. Se não fosse assim, de que valeria ler literatura? Sonhar por sonhar, num leito é mais cômodo do que entre páginas. E o romance de Gláucia Lemos é exatamente isso: um refúgio de onde saímos mais conscientes do que sejam o mundo e os homens.

Publicado originalmente na Verbo 21