"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 18 de dezembro de 2010

MINICONTOS INSPIRADORES

Amanhã, vou ministrar em Itaparica uma oficina de criação de minicontos que tem como base os textos do meu livro Nem mesmo os passarinhos tristes. Mas levarei também minicontos de outros autores que admiro e que partilho aqui com os leitores do Não leia! O primeiro conto, do Wilson Gorj, não tem título, e o de Dalton Trevisan é o número 11 de um total de 111, que ele chama de "ais".


Cansado de tirar o filho da cadeia, o pai comprometeu-se, de uma vez por todas, em pôr aquele delinquente na linha!
O maquinista não viu o corpo amarrado nos trilhos.

WILSON GORJ: Sem contos longos

LEMBRANÇAS DE VIAGEM

Ele não se lembra bem como aconteceu.
Perdeu o controle do carro e saiu da estrada.
Assim como quem sobe a calçada para cumprimentar pessoas, o carro e ele tocaram árvores, uma depois da outra, até se quedarem, cada qual em seu cantinho de mato.
Não tardou muito e os outros surgiram no local do acidente. Primeiro, curiosos; depois, sorrateiros.
Ele os viu, um a um, revirarem o carro e levarem seus pertences. Assistiu depenarem seu próprio corpo ― não podia se mexer, não podia falar. Depois o deixaram lá, gaveta revirada, e foram cuidar de suas vidas.
Disso ele se lembra bem.

CARLOS BARBOSA: A segunda sombra

11.

― Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz.
― ...
― Menino beija menina.
― Você é gozada, cara.
― ...
― Pensa que elas deixam?

DALTON TREVISAN: 111 ais

SNAP

Algo instintivo, intestinal, me levou a empunhar esta arma, agora apontada para a sua cabeça. Você tem filhos, sim, eu nunca os tive. Explosão seca de metal incandescente.

PATRICK BROCK: Textorama


O REENCONTRO

Um homem que o Sr. K. não via há muito o saudou com as palavras: “O senhor não mudou nada”. “Oh!”, fez o Sr. K., empalidecendo.

BERTOLT BRECHT: Histórias do Sr. Keuner

MAU NEGÓCIO

Começaram a tirar o pelo do porco para depois o comerem. Mesmo antes de morrer o animal murmurou: Eu-não-sou-um-porco-sou-um-homem. O casal ajoelhou-se e pôs-se a chorar.
― Este porco fala. Como seria rentável!

GONÇALO M. TAVARES: O senhor Brecht

O MILAGRE DOS COPOS

1

Tarde da noite, no bar quase vazio, dois amigos conversam.
― Pois é isso: eu e sua mulher nos amamos.
Susto. Incredulidade. Depois:
― E vocês, vocês...?

2

O garçom a recolher os cacos.


OS FUNERAIS

Foi somente quando se deu conta de que não podia mais ser pai e já não era mais filho que ele foi feliz.


MOMENTO

Tarde... Nenhuma vontade, nenhum sonho... O dia acabando, o sol morrendo... Eu também morrendo. A última cena de Encontros e desencontros me passando por dentro...


MAYRANT GALLO: Nem mesmo os passarinhos tristes


HISTÓRIA EDIFICANTE

Era uma vez duas pulguinhas que passaram a vida inteira economizando e compraram um cachorro só para elas.

MÁRIO QUINTANA: Porta giratória

IMAGEM: cena do filme Rumble fish (1983), de Francis Ford Coppola

4 comentários:

Biulismo disse...

Gostei de sua iniciativa, se puder, dê uma olhada em:

www.zonafronteirica.blogspot.com

Bípede Falante disse...

Pobre pulguinhas. Não conseguiram um circo, mas dividiram um bom cachorro :)
Adorei os minicontos!
beijo.

Lidi disse...

Mayrant, obrigada por partilhar estes minicontos com os teus leitores. O de Gorj eu já conhecia e, além de gostar muito, sempre trabalho com ele nas minhas aulas: adoro o jogo que Gorj faz com o sentido das palavras. Conhecia também o de Patrick Brock (também trabalho em sala, para explicar o implícito, o subentendido nos textos), o de Carlos Barbosa (muito bom!), o de Quintana (maravilhoso!) e os teus (acho que sou até suspeita para falar o quanto os aprecio). Os outros não conhecia e fiquei feliz por ter esta oportunidade. Um grande abraço e ótimo NATAL para você e para Andréia.

Felicidade Clandestina disse...

Podia ministrar outro curso - aqui em Salvador :)