"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O LODO

Um dos mais belos filmes já feitos, para mim, é Adeus, meninos, saído do pulso e da memória de Louis Malle, que escreveu um roteiro que também se lê como um romance breve. Em tempos tão traiçoeiros como os atuais, em que políticos se dedicam de corpo e alma a qualquer causa que possa lhes trazer uma resposta positiva nas urnas e em que um carrinho de bebê pode esconder uma bomba, este filme é um bálsamo de verdade e está acima de todas as diferenças que porventura separem os homens.
Quando a amizade de dois meninos, um católico e outro judeu, é interrompida pelo anti-semitismo – que também leva o Padre Jean, diretor do colégio interno onde ambos estudam e que aceita, em suas classes de meninos católicos, meninos judeus para protegê-los das garras nazistas –, descobrimos que tal acontecimento não é o de um momento, mas de uma vida inteira, e que, avessa a tudo isso, há ainda, no lodo mais fundo e espesso, uma esperança...
É esta, aliás, a compreensão que Julian, o menino católico, recebe e guarda até o fim de sua vida, na manhã em que lhe arrebatam seu amigo Bonnet, um garoto tão diferente e discreto – judeu, sensível, inteligente e que por isso mesmo era preciso eliminar. Sua reflexão final, já adulto, é memorável: “Bonnet, Négus e Dupré foram mortos em Auschwitz, o Padre Jean no campo de Mauthausen. O colégio reabriu suas portas em outubro de 1944. Mais de quarenta anos se passaram, mas até a minha morte eu me lembrarei de cada segundo dessa manhã de janeiro”.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

DESERTO À VISTA

Quando entro numa livraria e vejo determinados livros – e que não são poucos –, choro as árvores que são mortas para que eles sejam impressos. E é inevitável que me lembre de Jean Giono e seu precioso livrinho – um conto, na verdade – O homem que plantava árvores, que narra a história real de Elzéard Bouffier: “um sujeito inesquecível”, segundo o autor, e que plantou sozinho uma floresta de carvalhos, movido por uma generosidade que os devoradores de árvores, e de maus livros, desconhecem.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O GRANDE CORRETOR

No inquietante Irreversível, de Gabriel Noé, há uma frase que diz: “O tempo destrói tudo”. Não, o tempo corrige tudo. É o grande corretor. Décadas atrás Alfred Hitchcock não passava de um diretor renomado que conseguia agradar tanto ao público comum quanto à crítica mais exigente, liderada pelos cineastas franceses Truffaut e Godard; e assim mesmo não em todos os filmes: em alguns ele fracassou duplamente, embora sem abrir mão da individualidade, de sua maneira metódica e atraente de fazer cinema. Passado, porém, o furor das imposições de época, diários populares como o Jornal dos Sports estampam: “Hoje, 13 de agosto, em 1899, nascia o cineasta Alfred Hitchcock”. Cineasta! Ora, nos EUA cineasta era Orson Welles, e só. Portanto, houve uma significativa evolução, e inteiramente em razão do tempo, que fez de Hitchcock um cineasta clássico e de seus detratores poeira sideral. É, já dizia John Christopher, em 1956, no seu apocalíptico Death of grass: “Um homem sobe com o tempo”. Um homem de gênio, eu diria.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

SOLIDÃO E DISTÂNCIA

"Existe um momento nas separações em que a pessoa amada já não está conosco." Esta verdade inquestionável é de Gustave Flaubert. E pode ser comprovada no belo filme A separação, de Christian Vincent, baseado no romance homônimo, de Dan Franck, publicado no Brasil pela L&PM com um subtítulo terrível: "a história de uma separação contada do ponto de vista do homem". Os editores querem dizer com isso que a pessoa que sofre, neste caso, é o homem, como se os homens nunca sofressem com as separações... No filme, há uma seqüência chocante, de extrema solidão. A personagem de Isabelle Huppert está na cozinha com o marido, Daniel Auteuil, e de repente, com a maior calma do mundo, diz:
"– Não sei se te disse, mas amanhã à noite vou jantar fora.
– Vai jantar com quem?
Silêncio.
– Podia ter me dito – ele argumenta.
– Estou dizendo – ela retruca.
– Quero dizer: me avisado antes...
– O que isso teria mudado?"
Nada. A distância continuaria a mesma. E seria para o outro que ela iria se arrumar, se maquiar, não para ele
. Dor.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

ELOGIO DE GIRAUDOUX

Naquele que foi o seu último livro, Souvenir de deux existences, Jean Giraudoux relembra a visita que recebeu, em 1925, de um suposto jornalista: “O visitante entra. Não é um jornalista. Não é ninguém que deseja saber ou venha pedir. É alguém que sabe tudo e que me traz as últimas informações sobre a alma humana. É Rilke. Nós não nos conhecíamos”. Este é talvez, de todos os que já li, o mais sincero, espontâneo e completo elogio a um escritor. Não falta nada: admiração, respeito, lisonja, gratidão. Nem mesmo um certo tom de tímida austeridade, na escolha das palavras, na construção das frases, no encerramento – notadamente lacônico e escusável.

domingo, 26 de outubro de 2008

A POÇA

O primeiro romance policial que li marcou-me profundamente. Foi O destino bate à sua porta, de James M. Cain. Uma ediçãozinha barata, de bolso, vendida em bancas de revistas e que trazia, na capa, Jessica Lange de pernas abertas, numa pose do filme. Lembro que o emprestei a uma amiga de escola, que antes de ler o encapou para se prevenir da ira dos pais...
Eu jamais havia lido uma história tão crua e despojada de princípios, e com um estilo tão seco, tão cínico, vertiginoso, veloz. Uma história de amor e paixão, mas contada pelo viés do crime, do sangue, das maquinações cruéis. Matar por amor e para ficar juntos, com o dinheiro e os bens do outro... Nada mais verdadeiro e estimulante: o sentimento, a lealdade amorosa, a liberdade de ação e a vitória aparente, quase onírica. Uma poça empestada de sonho a refletir nosso rosto humano.