"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

VÁ E VEJA, 10: A JANELA DA FRENTE

Decisões radicais às vezes são tomadas pelos personagens de um filme exatamente porque a trama não pertence à vida, mas ao filme. Esta é uma regra que se aplica com frequência ao cinema norte-americano, especialmente o mais popular. Quando é um filme independente, ou de arte, ou de um diretor mais pessoal, como Sofia Coppola, a regra até pode ser quebrada, como em Encontros e desencontros. Já no cinema francês ou italiano acontece o contrário: é a coerência narrativa, baseada na verossimilhança, que estabelece a harmonia da trama. Um dos grandes exemplos modernos desta tendência é o poético A janela da frente (2006), de Ferzan Ozpetek. O casamento de Giovanna com Filippo não vai bem, e há algum tempo que ela está flertando com o vizinho do prédio em frente. Eles chegam a se encontrar, e ela precisa tomar a decisão de deixar o marido em favor do novo relacionamento, que promete ser intenso. Mas ela tem dois filhos, e a vida não é assim tão simples, como nos filmes. Então, coerentemente, ela vai optar por continuar a sua vida, com seu marido e seus filhos. Claro que apenas esmiucei a trama, deixando de lado propositalmente a poesia, as reflexões e vários outros aspectos (metalinguagem, citação a Janela indiscreta etc.) que fazem deste filme uma das melhores películas italianas dos últimos anos. E a festejada Giovanna Mezzogiorno, de O último beijo, mais uma vez dá um espetáculo de beleza e interpretação, bem na tradição das grandes atrizes italianas, como Sophia Loren, Claudia Cardinale e Monica Vitti.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

NOTAS DE LITERATURA, 1

Os críticos de literatura no Brasil ou são jornalistas ou simples leitores, que ficam no nível mais rasteiro das impressões de leitura. Em geral julgam o texto "pelo que ele não é", em lugar de avaliar de fato o seu propósito e as reflexões que desperta. Mas é assim mesmo: isso aqui é o Brasil, literatura é mais uma leitura, como qualquer outra, e, para muitos, não tem utilidade alguma. Nunca me enganei que fosse diferente, a prova é a quantidade de autores importantes, brasileiros, desterrados do cânone, que, entra ano, sai ano, continua o mesmo: exíguo e restrito a uma "forma de literatura" e ignorante quanto a gêneros importantes, como a ficção científica e o policial. Noutros países, há livros destes gêneros que são verdadeiras obras-primas da literatura, e não apenas no seu meio, como é o caso de Solaris, de Stanislaw Lem, e O longo adeus, de Raymond Chandler. Aqui, estes livros não teriam sido escritos ou, se escritos, seriam ignorados ou estigmatizados.

Imagem: capa da edição americana de 1989 de Éden, um dos melhores romances do polonês Stanislaw Lem.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

TEMPOS FÁUSTICOS

Neste livro, a escritora Dalila Machado examina a obra de três importantes poetas baianos. Vale a pena conferir quem são os eleitos e por quê.

Clique sobre o cartaz para ampliá-lo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

NOBEL DE LITERATURA 2010

Ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura de 2010, o peruano Mario Vargas Llosa vê coroada por um emblema importante, embora dispensável aos grandes escritores, uma obra que em vários aspectos é exemplar. Tivesse escrito apenas Os filhotes, novela recém-publicada pela Alfaguara em conjunto com o volume de contos Os chefes, ele já teria seu nome inscrito entre os maiores escritores do Continente. Mas sua obra é vasta e variada, com destaque para: Tia Júlia e o escrevinhador, Pantaleão e as visitadoras, A cidade e os cachorros, Quem matou Palomino Molero?, Cartas a um jovem escritor, A casa verde, A orgia perpétua, Conversa na catedral, Contra vento e maré, que constitui um saboroso conjunto de ensaios. Justíssima premiação.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

LEITURAS, 2: TONHO FRANÇA

A pequena e audaciosa editora Multifoco não se restringe à prosa, muito menos ao miniconto, gênero em que já publicou, entre outros, Wilson Gorj e Carlos Barbosa. Através da coleção FuturArte Poesias trouxe a lume ótimos poetas, como o paulista TONHO FRANÇA, autor de O bebedor de auroras (Rio de Janeiro: Multifoco, 2009). O poeta, que afirma "escrevo não para agradar ou convencer, escrevo o que minha alma grita e meu coração extravasa", tem poemas assim:

MUROS

A toda hora
A todo momento
Estou fora ou dentro?


URBE-DOIDA

toda bala é assassina
se (en)contra uma vida
não existe este papo
de "bala-perdida"


TRISTE

Amanheceu a primavera
E tudo se fez colorido e terno
Mas no olhar da moça
Ainda era inverno


FLORES...

As flores-de-maio, círio-de-nossa-senhora
Brincaram como tempo, f(l)ora de hora
Vermelhas como os versos que ora empunho
Tristes e perfumadas, como as tardes de junho.

sábado, 2 de outubro de 2010

LEITURAS, 1: A SEGUNDA SOMBRA

Se há um aspecto da literatura e do cinema brasileiros que abomino é o que chamo "minuto panfleto". Aquele momento em que a narrativa estaca e os personagens se põem a ensinar, protestar, recomendar, discursar: "use camisinha", "não trate assim as pessoas da terceira idade", "faça valer seus direitos de cidadão: vote" etc. Arre! Literatura modo de usar, cinema quadro do Fantástico. As séries de tevê e as telenovelas também estão cheias disso. Portanto, quando leio algo em que uma análise profunda do nosso país é feita sem que a literatura precise abrir mão de suas características de literariedade e ciframento fico feliz. É o caso deste miniconto de CARLOS BARBOSA:

LEMBRANÇAS DE VIAGEM

Ele não se lembra bem como aconteceu.
Perdeu o controle do carro e saiu da estrada.
Assim como quem sobe a calçada para cumprimentar pessoas, o carro e ele tocaram árvores, uma depois da outra, até se quedarem, cada qual em seu cantinho de mato.
Não tardou muito e os outros surgiram no local do acidente. Primeiro, curiosos; depois, sorrateiros.
Ele os viu, um a um, revirarem o carro e levarem seus pertences. Assistiu depenarem seu próprio corpo ― não podia se mexer, não podia falar. Depois o deixaram lá, gaveta revirada, e foram cuidar de suas vidas.
Disso ele se lembra bem.
(In: A segunda sombra. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010)

Está tudo ali. A formação e o caráter de um país expostos num preto-e-branco sem concessões: a miséria, a falta de solidariedade, a impiedade, o desrespeito ao outro; a solidão profunda do homem diante da adversidade e da indiferença alheia; a dor. 106 palavras que dizem tudo o que somos.


Imagem: a hipnótica arte fotográfica de Chris Jordan.