"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 29 de março de 2010

UM TÁXI PARA O INFERNO

Expulso aos cinco minutos do primeiro tempo, o meia-direita de uma equipe em crise, entrou no vestiário apenas para trocar de roupa e apanhar a mochila. Nem chegara a suar, portanto nem tomou banho. Foi embora.

Na rua, pegou o primeiro táxi que avistou.

Dentro do veículo, foi reconhecido e teve que se explicar, embora por vontade própria, espécie de desculpa a si mesmo por estar ali, voltando para casa, como um soldado que houvesse desertado:

“Fui expulso logo no início do jogo”.

Com essa informação, o motorista ligou o rádio e sintonizou a transmissão da partida. O time em crise já perdia por 2 x 0. Dois gols–relâmpagos, um atrás do outro. O time estava tonto, acossado, sem poder de reação. Cupins no vento, antes de um temporal. A bola ia e vinha na área, como se para seus jogadores estivesse besuntada de manteiga, e para o adversário, polvilhada de giz.

“Que ano, meu Deus!”, o jogador disse, suspirando.

O motorista parecia se divertir, mas, depois de um tempo, fechou o semblante e adotou uma fisionomia séria.

O carro corria livre, na noite sem tráfego. Não mais que trinta minutos do estádio até sua casa. E, com aquele deserto, não mais que vinte. O jogador se perguntou o que diria à mulher. Que fora expulso, claro! A verdade. A verdade que estaria em todos os jornais no dia seguinte. E na tevê, na internet, nas bocas por toda a cidade. Com um a menos, time se entrega. Três gols em dez minutos. Seis-a-zero foi pouco. Diretoria estuda a possibilidade de punir Gilvan. Técnico admite que expulsão foi decisiva para a construção do resultado. Expulsão desmontou o esquema e ainda desorientou o time. Empresário de Gilvan reconhece que depois da goleada a permanência do jogador no clube é quase impossível e que seu destino será mesmo a Europa. Colunista analisa o motivo da expulsão e explica o placar tão dilatado. Os dois próximos jogos serão decisivos. Técnico prevê mudanças nos três setores do time. Dupla de atacantes deverá ser substituída. Gilvan se recusa a dar entrevistas. Empresário afirma que até sexta-feira situação do meia-direita Gilvan estará definida. Presidente do clube é incisivo: “Aqui ele não joga mais!” Gilvan quebra o silêncio e diz que agora só pensa na Europa. Lazio confirma contratação de Gilvan. Gilvan é recebido com festa na Itália...


Conto recém-publicado na Verbo21, na coluna que tenho por lá, a Seara do Gallo. Portanto, quem quiser ler o resto da história, entre aqui: www.verbo21.com.br

Imagem: Bangu versus América, há muitos anos... Fonte: Blogol.

domingo, 28 de março de 2010

VÁ E VEJA, 6

Com ecos de Godard, Fellini, Antonioni, Saura, Tarkovski, Kar-Wai e Rohmer, Um dia muito especial é um filme que demonstra o quanto a originalidade na arte reside, em muitos casos, no resgate de uma tradição, deslocada para um novo contexto, geográfico ou temporal. Mohsen Makhmalbaf, que produziu, escreveu, dirigiu e montou o filme, vale-se dos cinco sentidos para refletir sobre o amor, a vida, o tempo, a História, a religião e a poesia. Podemos seguramente dizer que este filme é semiótico e sinestésico: não é para ser "acompanhado", em cada etapa da trama, se é que há alguma trama; deve ser apreciado pelo que reúne de belo em suas imagens, de forte e verdadeiro em seus diálogos reflexivos e de irreverente em seu contínuo vaivém entre o presente e o passado, embalado por temas musicais que mesclam violino, acordeon, melodias árabes, russas e ciganas. As influências dos cineastas citados, mais do que benéficas, são fonte e caldo, apoio e veneração. O diretor não sente pudor de apresentar seus mestres e com eles fazer o "seu filme": de Godard busca o sentido dos signos que estão à nossa volta e que nos regem, ainda que não admitamos isso; como Fellini, exercita a liberdade de filmar sem roteiro prévio ou padronizado, ao fluxo da criatividade; a exemplo de Antonioni, elege a relação amorosa e a mulher como meios de reflexão sobre a existência; de Saura resgata a dança como arte e jogo de sedução; de Tarkovski captura a poesia das coisas (uma sombrinha, o Outono, árvores floridas, luzes, folhas, ruas, o princípio da neve sobre os telhados); sob a influxo de Kar-Wai, introduz a música como elemento que desperta o espectador e o envolve no encantamento da trama, que, por sua vez é esvaziada ou apenas um pretexto intelectual para que, através de diálogos nada ingênuos, embora sem nenhum panfleto, espontâneos e profundos como nos filmes de Rohmer, reflitamos sobre o que é o amor, por conseguinte a vida e tudo o mais. Um dos pontos altos do filme está na cena em que o protagonista revela que trocou um quadro de Lênin por um do Messias e depois este por um cronômetro. Ora, ele trocou a História pela Religião e depois pela consciência do Tempo, essência única de que somos feitos e da qual não podemos escapar, o motor que nos rege, conduz e esmaga. E a consciência do tempo é a certeza de que se é um indivíduo, uno, e só há um ponto de alcance, a morte. Um filme para ser admirado, por sua beleza visual e estética, e desfrutado, pois compreende uma página da vida, a vida de todos nós.

sábado, 20 de março de 2010

OUTONO

Chegou o outono! E nós aqui de Salvador, que tivemos um verão abafado e grudento, devemos comemorar. O haicai (poema de origem nipônica) caracteriza-se por celebrar as estações do ano em confluência com o estado de espírito do eu do poeta, consequentemente do leitor. Tal aspecto acaba por impor que os haicais, na maioria do casos, quando reunidos em livro, sejam classificados ou separados conforme a estação que celebram: Primavera, Verão, Outono e Inverno. Uma ótima coleção de haicais japoneses organizada dessa forma é a Haicais: antologia e história (Unicamp, 1996), sob a criteriosa orientação dos estudiosos Paulo Franchetti, Elza Taeko Doi e Luiz Dantas. Neste maravilhoso livro, o Outono começa na página 142, com um belíssimo haicai de Bashô. Que esta estação, nem sempre venerada a contento, adentre a nossa sensibilidade.

Nunca se esqueça
Do gosto de solidão
Do orvalho branco. (Bashô)

As libélulas,
A cor destes muros:
Que saudade da terra natal! (Buson)

Todas essas estrelas
Surgindo,
Ah, o frio! (Taigi)

Estrelas no lago
E então novamente o ruído
Da chuva fina que cai. (Hokushi)

Primeiras neves
Meu maior tesouro,
Este velho penico. (Issa)

O jarro quebra
Ah, o despertar
Do gelo na noite! (Bashô)

O cão late
Quem andaria
Por esta noite de neve? (Meimei)

Se não tivessem voz
As garças desapareceriam
Sobre a neve da manhã. (Sono-Jo)

Apenas estando aqui,
Estou aqui.
E a neve cai. (Issa)

Dos poetas aqui reunidos, Bashô, Issa e Buson são os mais célebres, sobretudo o primeiro. A foto acima é do filme: Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (2003), de Ki-Duk Kim.

segunda-feira, 15 de março de 2010

EM ABRIL

Marcada por indagações existenciais, colocadas de forma elíptica, nos entrelugares e zonas limítrofes percorridas pelos seus personagens, a ficção de Mayrant Gallo tem nas entrelinhas a sua grande vocação.

E é nos curtíssimos textos deste Nem mesmo os passarinhos tristes que elas se tornam mais eloqüentes. Afinal, se “No ônibus, um homem deixa pender a cabeça, agarrado pelo sono. Não só pelo sono. Não só pelo sono” (O túnel da noite), somos instados a (re)construir a história daquele homem sobre o qual nada sabemos, mas que podemos imaginar. Algo, aliás, bastante salutar num tempo de idéias domesticadas e imagens pré-fabricadas.

Os mais de 100 minicontos deste livro trazem, pois, a densidade e a intensidade de seus livros anteriores, e consistem num apelo à imaginação dos leitores, convidados a ser co-autores das histórias aqui apenas entrevistas. Um apelo que se vale, em muitos casos, do registro poético para que seus dramas e cenas, ao fim da leitura, continuem ecoando em nossa sensibilidade.

CARLOS RIBEIRO, em texto da orelha.

domingo, 14 de março de 2010

CORTÁZAR E A VELHA GRAVATA

"Maurice Blanchot demonstrou que o tempo-calendário pouco tem a ver com o tempo laboratório central: presumido seria o escritor que acreditasse haver deixado definitivamente para trás uma etapa de sua obra. Em qualquer página futura, pode estar a nossa espera uma nova página passada, como se ficasse algo por dizer do ciclo que acreditávamos anterior, ou como se, depois de tirarmos todas as gravatas velhas para agradar a nossa amada esposa no dia das bodas de prata, descobríssemos que pusemos, que horror!, a gravata de bolinhas presenteada por aquela noiva que depois não se casou conosco."

JULIO CORTÁZAR, em nota ao seu admirável volume de contos Final de jogo (Expressão e Cultura, 1974). O mercado editorial brasileiro é realmente falho e misterioso: este é, sem dúvida, um dos melhores e talvez o mais surpreendente livro de histórias curtas de Cortázar e, no entanto, um dos menos lidos e reeditados. A última edição brasileira data de mais de trinta anos! Estão ali alguns de seus contos mais emblemáticos, indiscutíveis obras-primas, como: A continuidade dos parques, A porta incomunicável, Uma flor amarela, Depois do almoço, Axolotes e Final de jogo. Vamos torcer para que algum editor brasileiro traga este livro de volta, para o deleite de leitores e escritores, cortazarianos ou não.

sábado, 13 de março de 2010

RENATA BELMONTE

Uma das maiores evidências de que um escritor é bom, e sua obra relevante, é a leitura pública. Aquele momento em que um leitor de literatura (que nem sempre é um professor) ou o próprio autor leem a obra para uma plateia específica e atenta. O fascínio estará nos olhos, e o impacto final, em especial se for um conto, no silêncio que se segue à leitura da última linha. A escritora Renata Belmonte (foto) passou com louvor por esse teste quando levei seu conto A mesma de tempos atrás para uma oficina de literatura que ministrei há mais ou menos três anos, em Cipó, BA. Quando terminamos de ler, as alunas (só havia mulheres na turma) estavam aferradas às cadeiras, sem ação. O impacto foi tamanho, que deixamos a discussão sobre o conto para o dia seguinte, uma manhã de domingo. E que discussão. Foi um dos pontos altos do curso. Na releitura que fizemos no domingo, a vida ganhou outra cor, outro sentido. E vimos o quanto a literatura, com sua linguagem que nos escapa, seu tecido indomável, é ao mesmo tempo espelho e raiz das pessoas: o que está na superfície e o que se oculta, por timidez, temor ou vergonha de se mostrar, como nesse trecho da autora, em que todos nós, mulheres e homens, nos reconhecemos:

"Apenas se você me perguntasse, eu responderia. Convivo bem com silêncios, com a falta de explicações. Fui menina criada em cantos, tranças feitas pelas empregadas, órfâ de pai, intervalo incômodo na vida da mãe. Por isso, diariamente, sou abandonada e não me importo".

Parabéns, Renata! Pelos seus 28 anos e pelos seus 3 livros, marcantes para muitos leitores: Femininamente (2003), O que não pode ser (2006), ambos premiados, e Vestígios da Senhorita B. (2009).

terça-feira, 9 de março de 2010

CÂNONES

"Oh! É um absurdo fixar regras rígidas sobre o que se deve e o que não se deve ler. Mais da metade da cultura moderna depende do que não se deve ler."

A provocação é de Oscar Wilde (1854-1900), na peça A importância de ser prudente (Civilização Brasileira, 1998).
Comece logo a sua lista de obras e autores dispensáveis.

domingo, 7 de março de 2010

PROMETO SER BREVE

Este é o novo livro do escritor paulista Wilson Gorj, uma sensacional miscelânea de minicontos, aforismos, poemas e epigramas. A editora é a carioca Multifoco, através do selo Três por Quatro, que já está com mais quatro autores programados. Gorj, que apareceu com o interessantíssimo Sem contos longos (2007), leva ao extremo sua predileção pela economia verbal, pela ironia e pela paródia, cunhando neste livro alguns relatos que não vão além de uma ou duas linhas e textos que lembram a sisudez de Heráclito e a despretensão de Leminski. Para ser lido em qualquer lugar ou momento (na fila do banco, dentro do ônibus ou com água até o pescoço), Prometo ser breve cumpre a promessa de deleitar o leitor que não quer perder tempo nem palavras, mas espera ser enriquecido com metáforas e surpresas, como:

Os filhos crescem,
Criam asa.
Amanhã ou depois
Seremos só nós dois
Nesta casa.

Ou:

Que a poesia
esteja sempre conosco.
Pois ela é a flanela
que dá brilho
ao que antes era fosco.

Ou ainda:

O tempo voa sem ter asas.
A vida escoa sem ser água.
O dinheiro é tudo... e é nada.
O amor é eterno... e acaba.

E por fim:

À linha do horizonte,
surge a cauda de um pavão dourado.
Cantam os galos, enciumados.

sábado, 6 de março de 2010

MUNDOS

"Mas ler, bom, essa é uma vantagem que eu levo em relação a praticamente todas as pessoas que conheço. Descortina outros mundos. Não vivo nesses mundos, mas gosto de visitá-los."

Obviamente que Lawrence Block se refere, em seu conto Até onde a coisa pode ir, à leitura de literatura. O conto está no livro Escolha de mestre (Nova Fronteira, 2004), acompanhado de contos de John O'Hara, Joyce Carol Oates, Stephen Crane e Joe Gores.

Imagem: quadro do pintor iraniano Iman Maleki.

sexta-feira, 5 de março de 2010

VANGUARDAS

"Potêncius não era um homem. Era um congresso de fertilidade. Jamais uma pessoa foi tão símbolo da masculeza, da masculinidade, da macheza, da virilidade. Fidélia não sabia, mas se soubesse não lhe importaria: o coronel Potêncius, nas lutas, não arriscava a pele. Os grandes sensuais preferem guardar sua energia para as alcovas. Têm mais por que viver. Só os impotentes se realizam nas batalhas, nas grandezas políticas. Potêncius, se pudesse, jamais sairia do leito, tal o prazer que encontrava nas variações sensíveis desse jogo informal homem-mulher. Era o que hoje chamamos, vulgarmente, um atleta Probel, desses que compram suas camas em casa de esporte."

MILLÔR FERNANDES, em A viúva imortal (L&PM, 2009). Nesta comédia, baseada numa ideia de Petrônio, uma viúva faz jejum até a morte, por amor, para ir "viver" com o marido que morreu. Em nossa época, de uniões efêmeras e divórcios por minuto, isso é pura vanguarda. Como não se drogar nem ver televisão.

quinta-feira, 4 de março de 2010

NENHUMA PARTICIPAÇÃO EM LIBERTADORES

Nenhuma participação em Libertadores, essa era a verdade. Para que time ele torcia? Para um time que no campeonato nacional não ia além da posição intermediária. Tudo bem que depois de subir para a primeira divisão jamais ficou ameaçado de rebaixamento. Não, não mesmo. Isso ele reconhecia. Entre vinte clubes, estava sempre pelo meio, entre a oitava e a décima-quarta posição. Raramente à frente e jamais atrás, na rabeira. Isso era um mérito, sem dúvida. Mas, por outro lado, já estava cheio dessa farsa. Os clubes rebaixados, ou aqueles que viviam ameaçados e escapavam no fim, não passavam por isso apenas porque estavam em crise; sofriam porque se arriscavam: muitas vezes estavam envolvidos com a Libertadores, em meio às semifinais ou já na final, e apropriadamente largavam o campeonato brasileiro com os reservas, que nem sempre iam mal, mas raramente iam bem e deixavam seus times no pé da tabela, a torcida irada por se ver, de repente, o centro da pilhéria, apesar do sucesso em nível continental. E nem assim os clubes de porte médio – e seu clube não passava de médio – aproveitavam a chance. A tendência – ou talvez a meta – era ganhar em casa e empatar ou perder de pouco fora. Ao fim, dos mais de cem pontos disputados – e como não se podia ganhar todas as partidas em casa – seu clube chagava a sessenta ou sessenta em cinco, no máximo. O suficiente para se inscrever entre os dez primeiros e disputar a Copa Sul-Americana, espécie de segunda divisão do intercontinental. Pedreira torcer para um time assim, come-corda. Já estava de saco cheio. Nenhuma participação em Libertadores.

Conto recém-publicado na Verbo21, na coluna que tenho por lá, a Seara do Gallo. Portanto, quem quiser ler o resto da história, entre aqui: www.verbo21.com.br
Imagem: Futebol (1935), de Portinari.