"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

IN MEMORIAM DE MINHA MÃE



BASTOU QUE O TELEFONE TOCASSE

Passei meses sem ser mais poeta.
Passei meses sendo qualquer coisa
Entre a certeza e a vida, que são coisas
Que evitam a poesia e não exigem rima.

Mas bastou que o telefone tocasse,
Que a voz do outro lado dissesse
“Se prepare, você precisa ser forte”,
Para que eu soubesse o que sempre soube:
Que o que acontece já aconteceu.

De fato, minha mãe já havia morrido,
E eu já fora seu filho, em todo o sempre
Que só agora a física explica
E a poesia sempre susteve.

O futuro é, o passado será e o presente foi.
Tudo já aconteceu e ainda acontece e acontecerá.

Minha mãe, portanto, está nascendo, neste momento,
E também está sonhando, seu rosto lindo e adolescente,
Com seu amado, de quem nascerei em breve.

E é inevitável que eu pense, como Wislawa Szymborska,
Que, tão logo começa a ser pronunciada,
A palavra futuro torna-se passado.

Tão logo se morre, começa-se a nascer, por analogia.

E, assim, em algum lugar minha mãe está à minha espera.
E, assim, em algum momento eu saio de suas entranhas.
Noutro, meu pai me faz,
E seus olhos e os dela são os mais felizes.
Noutro ― ainda mais puro ―, ela me acaricia,
Me põe para dormir,
Me faz tomar o remédio, o banho, e comer e rir
E pronunciar as primeiras sílabas.

Noutro ainda, e não mais importante,
Ela me ensina a ler, a escrever,
A combinar as palavras.
Estas, com sua falta, sua imensa presença ― incorpórea.

Muitas pessoas confundem humor e sarcasmo com ironia.
Ironia é isto:
Em setembro, levei minha mãe ao aeroporto,
Para passar um mês em São Paulo com meu irmão.
Em novembro, fui buscá-la, no mesmo aeroporto,
E ela estava dentro de um caixão.
Mas nem mesmo isto é novo nem será,
Pois já aconteceu, está acontecendo e acontecerá.

Tatibitateio minhas primeiras sílabas num futuro passado,
E meu pai e minha mãe riem.
Acabaram de se conhecer, de se amar,
E já me viram nascer
E já se separaram
E já de volta de novo, olhos nos olhos,
Lábios que se tocam.

Costuma-se chamar tempo ao correr dos dias.
Mas tempo é palavra imprecisa.
Chamemos a tudo vida ― o antes, o depois e o agora.
E fiquemos à espera, no entrepalavras,
Do que nos reserva a sintaxe da História.

MAYRANT GALLO. Salvador, 21 de novembro de 2011.

domingo, 20 de novembro de 2011

DUAS MÃES

A querida Aeronauta escreveu em seu blogue este texto para mim e, indiretamente, para minha mãe, para todas as mães. Transcrevo-o aqui, porque as coisas bonitas devem estar em mais de um lugar, até mesmo nos sonhos.

"(Para Mayrant Gallo). As mães nunca deveriam morrer. Drummond disse algo assim, mas de uma maneira linda. Eu digo aqui, à minha maneira, como uma dor prenunciada, ensaiada, dolorida. Não, Deus, não permita que minha mãe vá embora, e de novo parafraseio tristemente Drummond. Toda vez que uma mãe conhecida morre, morro num soterramento plano. Em maio de 2010 senti um grande abalo. Em maio de 2010 morreu a mãe de minha amiga de infância, uma segunda mãe, e que se dava tão bem com a minha, de muitas e longas datas; ambas viram as duas meninas, eu e minha amiga, cresceram. Ambas conversavam sobre rádio e novela. Quando essa mãe querida, e tão parecida com a minha, morreu, eu sofri muito; era como se, Deus livre e guarde, morresse um pedaço de minha mãe, como se fosse um pré-ensaio de sua morte. Chorei de maneira multiplicada. Ontem morreu a mãe de um amigo. Uma mãe conhecida, que exercia, igualzinho à minha, o papel de mãe. Ambas foram apresentadas no Natal de dois mil e cinco, e estavam vestidas com um vestido parecido; logo se identificaram. Deram-se tão bem, e no mesmo instante já estavam trocando a receita de rabanada. Ontem soube de sua morte, e de repente senti a pontada da dor, o anúncio de uma dor ingrata, pérfida. Passei vários emails para o meu amigo, imaginava que a dor que ele sentia era imensa, pois que repercutia em mim de uma maneira terrivelmente incômoda e cruel. Disse Jorge Luis Borges, sabiamente, que devemos olhar para todas as pessoas como se elas já estivessem mortas. Faço esse exercício desde que li tal frase. E olho para mãe sempre com lágrimas nos olhos. E nem posso pedir a Deus para eu ir antes dela; não posso, pois de todas as saudades e dores que uma mãe pode sentir, essa deve ser a mais inimaginável e perversa."(AERONAUTA)

Foto: Maria José e sua amiga Carmelita, que não é a mãe da Aeronauta, mas a mãe de minhas irmãs.

sábado, 19 de novembro de 2011

CONFORTO DE UM AMIGO

De todas as mensagens que recebi desde ontem, de amigos e parentes (e não foram poucas e todas muito bonitas), escolhi esta para publicar aqui, como forma de agradecimento às pessoas que me escreveram e compareceram ao funeral de minha mãe. Sintam-se todos abraçados, pelo conforto que me deram, pessoalmente ou através de palavras.

"Mayrant, fujo da obviedade dos pêsames não pelo gosto que compartilhamos pela originalidade na escrita, mas por não perceber a dimensão da dor alheia: sempre fica aquela sensação de estarmos sendo um pouco trapaceiros e bastante limitados.

Cabe a mim, na condição de seu amigo recente, tentar lhe devolver o futuro. Não em forma de coisas grandiosas ou exageradas – isso fica para os seus amigos de longa data, para sua esposa, para os seus próximos. Mas na condição de trazer ao seu cotidiano aquele ritmo constante e confortável; aquela rotina em que pouco nos falamos, mas muito dizemos: os livros, projetos, a admiração, o respeito e as cervejas que, brevemente, espero compartilhar com você, juntamente com a conta, obviamente.

Não quero ser superficial. E suspeito que sua dor deva ter muito mais do que o tamanho dos fatos, ainda mais sendo você quem é. Algo que supera a morte, os ritos fúnebres, a ausência; algo que deve ir além, chegando às lembranças de uma tarde em sua infância, ou de um prato específico, ou de um aniversário, enfim, de uma vida.

Portanto, meu chapa, sinta-se a vontade para procurar seus amigos. E trazer de volta a “triunfante rotina” da qual somos adeptos.*

Abraços, Gustavo Rios.

*Esta expressão não é minha. Está numa dedicatória de um livro que me deram."

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

NOTA DE FALECIMENTO

"Parem todos os relógios, desliguem o telefone.
Evitem o ladrar do cão com um osso apetitoso.
Silenciem os pianos e com tambores surdos
Tragam o caixão, deixem vir os que choram.

Deixem que os aviões gemam lá em cima.
(...)

Não preciso mais das estrelas, apaguem todas;
Guardem a lua e desmontem o sol;
Esvaziem o oceano e acabem com as florestas;
Pois nada agora pode ter alguma utilidade."

Com os fragmentos deste poema de W. H. Auden, que é um dos mais belos sobre a morte, comunico a amigos, parentes e leitores do Não Leia! que minha mãe, Maria José Vasquez Costa, faleceu hoje, pela manhã. O funeral será amanhã, às 11 horas, no Campo Santo, Salvador, BA.

Maria José Vasquez Costa
(29/08/1932-18/11/2011)