"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

MINICONTOS REAIS, 1: MÃE-PÁSSARO

Depois de um incêndio florestal no Parque Nacional de Yellowstone, Wyoming, EUA, guardas florestais começaram a sua caminhada até a montanha, para avaliar os danos causados à fauna e à flora. Um deles encontrou um pássaro literalmente petrificado pelas cinzas, no chão, ao pé de uma árvore. Abalado com a cena trágica, o guarda tocou delicadamente o pássaro com uma vara, e três filhotes minúsculos correram de sob as asas de sua mãe morta. A mãe, amorosa e protetora, convicta do desastre iminente, tinha levado seus filhos para a base da árvore, reunindo-os sob suas asas. Por instinto, sabia que a fumaça tóxica subiria. Ela poderia ter voado para a sua própria segurança, mas se recusou a abandonar seus bebês. Em seguida, quando o incêndio chegou, o calor queimou seu corpo, mas ela permaneceu firme, permitindo-se morrer por aqueles que, sob a proteção de suas asas, viveriam.

sábado, 3 de dezembro de 2011

SOB O SOL

"Uma jovem de corpo bem feito é muito parecida com outra qualquer. Duas pernas bronzeadas, dois braços bronzeados, uma roupa de banho ― apenas um corpo exposto ao sol. Quando uma mulher fala, ri, vira a cabeça, mexe a mão ― aí sim, aí tem personalidade ― individualidade. Mas no rito do sol ― não."
Trecho de Morte na praia, de Agatha Christie, cujo título em inglês soa como uma poética sentença: Evil under the sun. O mal sob o sol.
Um ótimo texto para celebrar o Verão, que se aproxima. Na foto: a jovem Brigitte Bardot.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

IN MEMORIAM DE MINHA MÃE



BASTOU QUE O TELEFONE TOCASSE

Passei meses sem ser mais poeta.
Passei meses sendo qualquer coisa
Entre a certeza e a vida, que são coisas
Que evitam a poesia e não exigem rima.

Mas bastou que o telefone tocasse,
Que a voz do outro lado dissesse
“Se prepare, você precisa ser forte”,
Para que eu soubesse o que sempre soube:
Que o que acontece já aconteceu.

De fato, minha mãe já havia morrido,
E eu já fora seu filho, em todo o sempre
Que só agora a física explica
E a poesia sempre susteve.

O futuro é, o passado será e o presente foi.
Tudo já aconteceu e ainda acontece e acontecerá.

Minha mãe, portanto, está nascendo, neste momento,
E também está sonhando, seu rosto lindo e adolescente,
Com seu amado, de quem nascerei em breve.

E é inevitável que eu pense, como Wislawa Szymborska,
Que, tão logo começa a ser pronunciada,
A palavra futuro torna-se passado.

Tão logo se morre, começa-se a nascer, por analogia.

E, assim, em algum lugar minha mãe está à minha espera.
E, assim, em algum momento eu saio de suas entranhas.
Noutro, meu pai me faz,
E seus olhos e os dela são os mais felizes.
Noutro ― ainda mais puro ―, ela me acaricia,
Me põe para dormir,
Me faz tomar o remédio, o banho, e comer e rir
E pronunciar as primeiras sílabas.

Noutro ainda, e não mais importante,
Ela me ensina a ler, a escrever,
A combinar as palavras.
Estas, com sua falta, sua imensa presença ― incorpórea.

Muitas pessoas confundem humor e sarcasmo com ironia.
Ironia é isto:
Em setembro, levei minha mãe ao aeroporto,
Para passar um mês em São Paulo com meu irmão.
Em novembro, fui buscá-la, no mesmo aeroporto,
E ela estava dentro de um caixão.
Mas nem mesmo isto é novo nem será,
Pois já aconteceu, está acontecendo e acontecerá.

Tatibitateio minhas primeiras sílabas num futuro passado,
E meu pai e minha mãe riem.
Acabaram de se conhecer, de se amar,
E já me viram nascer
E já se separaram
E já de volta de novo, olhos nos olhos,
Lábios que se tocam.

Costuma-se chamar tempo ao correr dos dias.
Mas tempo é palavra imprecisa.
Chamemos a tudo vida ― o antes, o depois e o agora.
E fiquemos à espera, no entrepalavras,
Do que nos reserva a sintaxe da História.

MAYRANT GALLO. Salvador, 21 de novembro de 2011.

domingo, 20 de novembro de 2011

DUAS MÃES

A querida Aeronauta escreveu em seu blogue este texto para mim e, indiretamente, para minha mãe, para todas as mães. Transcrevo-o aqui, porque as coisas bonitas devem estar em mais de um lugar, até mesmo nos sonhos.

"(Para Mayrant Gallo). As mães nunca deveriam morrer. Drummond disse algo assim, mas de uma maneira linda. Eu digo aqui, à minha maneira, como uma dor prenunciada, ensaiada, dolorida. Não, Deus, não permita que minha mãe vá embora, e de novo parafraseio tristemente Drummond. Toda vez que uma mãe conhecida morre, morro num soterramento plano. Em maio de 2010 senti um grande abalo. Em maio de 2010 morreu a mãe de minha amiga de infância, uma segunda mãe, e que se dava tão bem com a minha, de muitas e longas datas; ambas viram as duas meninas, eu e minha amiga, cresceram. Ambas conversavam sobre rádio e novela. Quando essa mãe querida, e tão parecida com a minha, morreu, eu sofri muito; era como se, Deus livre e guarde, morresse um pedaço de minha mãe, como se fosse um pré-ensaio de sua morte. Chorei de maneira multiplicada. Ontem morreu a mãe de um amigo. Uma mãe conhecida, que exercia, igualzinho à minha, o papel de mãe. Ambas foram apresentadas no Natal de dois mil e cinco, e estavam vestidas com um vestido parecido; logo se identificaram. Deram-se tão bem, e no mesmo instante já estavam trocando a receita de rabanada. Ontem soube de sua morte, e de repente senti a pontada da dor, o anúncio de uma dor ingrata, pérfida. Passei vários emails para o meu amigo, imaginava que a dor que ele sentia era imensa, pois que repercutia em mim de uma maneira terrivelmente incômoda e cruel. Disse Jorge Luis Borges, sabiamente, que devemos olhar para todas as pessoas como se elas já estivessem mortas. Faço esse exercício desde que li tal frase. E olho para mãe sempre com lágrimas nos olhos. E nem posso pedir a Deus para eu ir antes dela; não posso, pois de todas as saudades e dores que uma mãe pode sentir, essa deve ser a mais inimaginável e perversa."(AERONAUTA)

Foto: Maria José e sua amiga Carmelita, que não é a mãe da Aeronauta, mas a mãe de minhas irmãs.

sábado, 19 de novembro de 2011

CONFORTO DE UM AMIGO

De todas as mensagens que recebi desde ontem, de amigos e parentes (e não foram poucas e todas muito bonitas), escolhi esta para publicar aqui, como forma de agradecimento às pessoas que me escreveram e compareceram ao funeral de minha mãe. Sintam-se todos abraçados, pelo conforto que me deram, pessoalmente ou através de palavras.

"Mayrant, fujo da obviedade dos pêsames não pelo gosto que compartilhamos pela originalidade na escrita, mas por não perceber a dimensão da dor alheia: sempre fica aquela sensação de estarmos sendo um pouco trapaceiros e bastante limitados.

Cabe a mim, na condição de seu amigo recente, tentar lhe devolver o futuro. Não em forma de coisas grandiosas ou exageradas – isso fica para os seus amigos de longa data, para sua esposa, para os seus próximos. Mas na condição de trazer ao seu cotidiano aquele ritmo constante e confortável; aquela rotina em que pouco nos falamos, mas muito dizemos: os livros, projetos, a admiração, o respeito e as cervejas que, brevemente, espero compartilhar com você, juntamente com a conta, obviamente.

Não quero ser superficial. E suspeito que sua dor deva ter muito mais do que o tamanho dos fatos, ainda mais sendo você quem é. Algo que supera a morte, os ritos fúnebres, a ausência; algo que deve ir além, chegando às lembranças de uma tarde em sua infância, ou de um prato específico, ou de um aniversário, enfim, de uma vida.

Portanto, meu chapa, sinta-se a vontade para procurar seus amigos. E trazer de volta a “triunfante rotina” da qual somos adeptos.*

Abraços, Gustavo Rios.

*Esta expressão não é minha. Está numa dedicatória de um livro que me deram."

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

NOTA DE FALECIMENTO

"Parem todos os relógios, desliguem o telefone.
Evitem o ladrar do cão com um osso apetitoso.
Silenciem os pianos e com tambores surdos
Tragam o caixão, deixem vir os que choram.

Deixem que os aviões gemam lá em cima.
(...)

Não preciso mais das estrelas, apaguem todas;
Guardem a lua e desmontem o sol;
Esvaziem o oceano e acabem com as florestas;
Pois nada agora pode ter alguma utilidade."

Com os fragmentos deste poema de W. H. Auden, que é um dos mais belos sobre a morte, comunico a amigos, parentes e leitores do Não Leia! que minha mãe, Maria José Vasquez Costa, faleceu hoje, pela manhã. O funeral será amanhã, às 11 horas, no Campo Santo, Salvador, BA.

Maria José Vasquez Costa
(29/08/1932-18/11/2011)

sábado, 29 de outubro de 2011

FINALMENTE!

Brancos reflexos ao longe (R$15,00) e Três infâncias (R$24,90) já estão à venda na X Bienal do Livro da Bahia. O primeiro será lançado no próximo dia 2, no estande da editora Livro.Com, às 19 horas. Quanto ao segundo, faremos um pré-lançamento no estande da editora Casarão do Verbo, no dia 3, 4 ou 5, a confirmar.

Três infâncias reúne obviamente três textos: a novela Moinhos, o romance lírico O ritual no jardim e a narrativa Dias de garoto. Brancos reflexos ao longe enfeixa em geral contos publicados em periódicos, como Correio da Bahia, Continente Multicultural e Verbo 21. No entanto, o relato mais longo do volume, Antes que eu mude de ideia, é rigorosamente inédito.

domingo, 16 de outubro de 2011

LANÇAMENTO DE "TRÊS INFÂNCIAS"

O lançamento de Três infâncias não será mais dia 22 de outubro, na LDM. Será em novembro, em data ainda indefinida, na Livraria Cultura, do Salvador Shopping.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

NA FLICA 2011

Nesta sexta-feira, não percam, na FLICA 2011, em Cachoeira, precisamente durante a Programação Damário Dacruz, o lançamento da coletânea Tardes com anões: 7 minicontistas. Uma festa, ou melhor, uma farra entre escritores amigos. Se vamos um dia entrar para a história da literatura (e é mais provável que não, já que o cânone da literatura brasileira, diferentemente de outras literaturas, diminui a cada ano), isso é outra história. Aliás, um brevíssimo miniconto. O livro custa apenas 5 reais, preço de conto de fadas. Para os interessados de outros estados, acrescentem-se mais 4,50 para a postagem. Os pedidos podem ser feitos por aqui, através de comentário, ou pelos e-mails m.gallo@ig.com.br e galmeirellesc@yahoo.com.br.

sábado, 1 de outubro de 2011

"NÃO LEIO!"

Antes, os brasileiros tinham dois motivos para não ler: 1) "o livro no Brasil é caro demais"; 2) "não tenho tempo". Agora, têm um terceiro: "o livro vai acabar".

sábado, 17 de setembro de 2011

VEM AÍ TAMBÉM!

Título: Três infâncias
Autor: Mayrant Gallo
Editora: Casarão do Verbo
Gênero: ficção
Formato: 15x23cm
Capa: André Ricci Romano
Lançamento: 22 de outubro de 2011, 10 horas da manhã
Local: LDM (Rua Direita da Piedade, 20, Centro, Salvador, BA)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

VEM AÍ!

Título: Brancos reflexos ao longe
Autor: Mayrant Gallo
Editora: Livro.Com
Gênero: contos
Formato: 11x20cm
Capa: Livro.Com
Lançamento: X Bienal do Livro da Bahia
Data: 2 de novembro de 2011, 19 horas

sábado, 4 de junho de 2011

O MUNDO ATRAVÉS DE UM RAIBÃ

Conheci Tom Correia através de outro contista, Rodrigo Melo, de Ilhéus, que me disse: “Você precisa ler os contos de Tom Correia L.!” Naquela época, o Tom assinava seu nome assim, com um enigmático L final.

Não demorei a achar seu primeiro livro, Memorial dos medíocres, e foi então que comecei com ele uma proveitosa relação leitor-autor, a ponto de, em todas as aulas e oficinas de literatura que ministrei desde então, não deixar nunca de usar seus textos ― e que em geral acabavam por constituir uma atração à parte, tão fascinados ficavam os alunos. Acho que isso se deve ao fato de seus contos parecerem despretensiosos e fáceis de ler, embora a constante moldura de ambiguidade e ironia. Ora, esse é um dos grandes méritos de bem poucos prosadores: parecerem tão naturais quanto o ar que respiramos. A empregada do húngaro Ferenc Molnár chegou a dizer um dia que, se quisesse, ela também poderia escrever como ele!

Tanto em Memorial dos medíocres quanto neste Sob um céu de gris profundo, Tom Correia é quem ele é: simples, direto, irônico, bem-humorado e, sobretudo, melancólico. É um dos autores mais melancólicos que já tive oportunidade de ler. Talvez só Tchekov, na Rússia, e Kosztolányi, na Hungria, tenham chegado a esse nível de tristeza. Um outro paralelo que encontro é o do norte-americano, considerado o pai do minimalismo na literatura, Raymond Carver.

Dizer o que se tem a dizer num tom específico não é para qualquer autor. E Tom Correia encontrou o seu ― aparentemente sem esforço. Contudo, pensar assim é um equívoco: Tom labuta sobre seu texto como um relojoeiro, até atingir este atributo e fazer com ele a sua arte.

Eu poderia me estender aqui, a comentar os contos do Tom e a exemplificar o método que ele estabeleceu e que, ao menos por ora, o define, mas é preferível que o próprio leitor o faça. Direi apenas que um dos contos que mais admiro no volume é Um raibã, espécie de teatro da condição do escritor em nossa época. Em muitos casos, quem publica e faz sucesso é quem não diz nada de relevante, mas o faz com pompa, belas capas e toda uma assessoria de imprensa que o coloca em evidência na mídia e obriga o público a consumi-lo. Situação compreensível, afinal de contas, como afirma o protagonista do referido conto, oferecer ideias é um perigo ― e ainda mais, talvez, absorvê-las.

Malditos sejam os escritores ocos que escrevem para uma plateia dotada de cabeça de papelão! Não é o caso de Tom Correia. Com ou sem L.

Foto: Tom Correia é o último à direita, com seu "raibã". Ainda na foto: os escritores Carlos Barbosa e Elieser Cesar, e as poetisas Ângela Vilma e A. Café-Gallo. O local: o velho bar e restaurante O Líder.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O CÉU DE TOM CORREIA

Finalmente, depois de quase uma década sem publicar, Tom Correia chega ao seu segundo volume de contos, numa coedição da Casarão do Verbo e Língua Solta, com o apoio da Fundação Pedro Calmon (Secretaria de Cultura), com os recursos do Fundo de Cultura.

Não percam a noite de autógrafos com o autor: dia 10 de junho, às 19 horas, na Galeria do Livro, Espaço Unibanco de Cinema, Centro, Salvador, BA.

Clique sobre o cartaz para ampliá-lo.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

VAMPIRAGEM

Palestras e conferências de Carlos Ribeiro, Mônica Menezes, Nancy Vieira e Milena Britto sobre Bram Stoker, Miguel Sanches Neto e Sheridan Le Fanu.

Realização da Diretoria do Livro e Leitura, da Fundação Pedro Calmon, Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. O evento, em quatro edições, ocorrerá nas bibliotecas públicas. Dias, locais e horários, no cartaz.

Clique no cartaz para ampliá-lo e facilitar a leitura.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

LEITURAS, 16: ANATOMIA DE UM CRIME

De volta à estante, o romance que inspirou um dos melhores filmes policiais de todos os tempos, Anatomia de um crime (1959), de Otto Preminger, com James Stewart, Lee Remick e Ben Gazzara, em início de carreira. O filme foi indicado a sete categorias do Oscar, inclusive a de melhor filme.

O livro homônimo estava esgotado no Brasil há várias décadas, era uma raridade editorial só encontrada nos sebos e a preços pouco convidativos. A José Olympio Editora acaba de lançar uma nova edição, com tradução da escritora Sônia Coutinho. Escrito por um ex-promotor, Robert Traver, e baseado numa história real, Anatomia de um crime se passa numa cidadezinha do Meio-Oeste americano, onde o advogado Paul Biegler, com a carreira comprometida, tem a oportunidade de se reabilitar perante a sua categoria profissional, defendendo o tenente Frederick Manion, acusado de assassinar o homem que supostamente teria estuprado sua esposa. Mas o caso não é assim tão simples. Houve realmente estupro? O que houve, na verdade? E qual é o grau de envolvimento da mulher com o homem que foi morto?

Se Alfred Hitchcock afirmava que livros ruins davam bons filmes, o inverso também é verdade. Mas o caso aqui é de um ótimo livro que originou um ótimo filme. Em tempos de romances de qualidade duvidosa, e pretensiosos filmes policiais que, ao fim, não passam de um saco de tiros, sopapos, correria, perseguição de carros e explosões pirotécnicas, leia e depois veja Anatomia de um crime. A perenidade de ambos não é por acaso.

terça-feira, 17 de maio de 2011

LEITURAS, 15: CONTOS À QUEIMA-ROUPA

Como qualquer gênero literário que subverte a tradição, o miniconto também já possui seus inimigos. Recentemente, em conversa com um escritor numa livraria, o miniconto veio à baila, e o autor, sem meias palavras, me disse: "Miniconto é bobagem, porcaria, coisa de quem não tem assunto nem sabe escrever; não é literatura". Com efeito, também não tinham assunto nem sabiam escrever Julio Cortázar, Jules Rénard, Jean Cocteau, Yasunari Kawabata e tantos outros. E eles não foram literatos, não fizeram literatura.

Ora, simplesmente o miniconto está incomodando, por estes motivos: 1) é um gênero jovial, que atrai os jovens e conquista leitores; 2) vai aos poucos se tornando popular, pois agrupa elementos de outros gêneros, narrativos ou não, como a poesia, o cinema, a piada, o acontecimento cotidiano, a propaganda etc.; 3) é um gênero que se desenvolve com o que está ao alcance das mãos, em assunto (a realidade, a vida) e forma (todas as formas narrativas, todos os tons, todas as expressões de arte e cultura); 4) "condensado ao mínimo", faz do riso, do sarcasmo e da ironia o seu ganha pão; 5) quando não é direto, é metafórico, e nas duas maneiras impacta o leitor.

Emergente das Minas Gerais, que tem larga tradição em prosadores, nos chega pela coleção Três por Quatro (editada pelo Wilson Gorj), da Multifoco, o volume Contos à queima-roupa, de Arth Silva. Mais um achado da coleção, que já alcança seu décimo título. Arth Silva divide seu livro em duas seções: os minicontos (p. 11 a 63) e os contos curtos, mais tradicionais (p. 64 a 98). Em ambas, numa linguagem despojada de atavios, com a ironia numa mão e o riso na outra, o autor destila sua verve. São muitos os contos a destacar. Entre os contos curtos, me agradaram sobretudo 10 minutos, Sinal vermelho e Ele e Ela, pelos seus temas (respectivamente, a infância, a violência no trânsito e a espera pelo amor), sua poesia ("A sirene dispara alto. Próximo ao local, sobre os travesseiros, as crianças sonham com o grito de um enorme dragão"), sua dor ("O choque partiu ao meio a sirene, que nunca mais voltará a funcionar"). São contos reais, duros. Ao mesmo tempo, reflexões sobre a existência, metáforas do sofrimento humano.

Os minicontos, por sua vez, se alimentam dos nossos costumes patéticos. Entre os muitos que merecem destaque, este: "Certo dia, o C saiu engravatado. Apelidaram-no de Cedilha. aCanhado (sic), nunca mais conseguiu comeÇar (sic) uma frase". Ou este outro: "Recém-nascido, e sua beleza já era admirada. Todos diziam que seu nariz era o da mãe; os cabelos, da avó; os olhos claros, de um tio-avô europeu. O bebê Frankenstein sorria com os lábios do pai". Ou ainda este, mais cruel: "Destemido, colocou o colete à prova de balas e subiu o morro. Acertaram-lhe na cabeça". É, os bandidos também têm seus atiradores de elite.

Há ainda a série de quatro minicontos que ironizam o hábito ou a moda (e estar fora da moda não é estar fora do mundo), em nossa época, de tornar público o que é particular, como se o mais simples dos mortais fosse um astro ou estrela a atrair todos os olhares. Não é. A questão não vai além disso: a pessoa se encerra dentro de casa e expõe na internet quem é ou, mais frequentemente, quem não é. E amigos elogiam, inimigos disparam ofensas. Vida que segue, em mentiras e, às vezes, verdades:

MUNDO MODERNO [parte 3]

O parto estava feito.
Cordão umbilical cortado e banho dado.
Só faltava agora registrá-lo. No Orkut. (ARTH SILVA)

terça-feira, 10 de maio de 2011

MAIS CARTAS BAHIANAS


A coleção Cartas Bahianas, da P55, se acresce de mais dois autores: Cláudia Barral e Ruy Espinheira Filho. Prestigiem!

Cliquem na imagem, para ampliá-la.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

EXERCÍCIOS DE IMAGINAÇÃO

1. Por que o Brasil ainda não levou o Nobel de Literatura?

Ademir Assunção: Porque o Brasil é um país distante dos países nórdicos, é habitado por chimpanzés e, ainda por cima, seus escritores escrevem em português. Adrienne Myrtes: Porque Marcelino Freire ainda não foi traduzido na Suécia. Aleilton Fonseca: Porque os jurados suecos não sabem ler em português (risos). Seriamente: porque nossos autores não escrevem sobre temas de nítido interesse mundial. Branca Maria de Paula: Politicamente, é mais fácil ler chinês do que português. Machado de Assis, Rosa e Clarice: tupiniquins demais? Quando o Nobel enfim acontece, atraca na Metrópole, claro. Carlos Felipe Moises: Porque Drummond, Vinicius, Cecília, Rosa, Osman Lins, João Cabral e outros nunca tiveram o apoio de um lobby político internacional. Edson Cruz: Tem a ver com a língua, com a recepção, com a ausência de uma política cultural externa em nível governamental, com as não-traduções patrocinadas para outras línguas. O resto nós temos. Evandro Affonso Ferreira: O Brasil é fraquinho nesse departamento de política nobelística. Guimarães Rosa merecia ter ganhado. Fernando Marques: O Nobel também premia escritores de países emergentes ou pobres, mas só quando já avalizados por editores europeus ou americanos. Vamos lá? Guilherme Kujawski: Porque ainda não apareceu nenhum escritor bombástico. Lima Trindade: Porque se um escritor brasileiro ganhasse, haveria um número alarmante de haraquiris nas Letras Nacionais. Luis Dill: Porque nossos grandes autores ainda não receberam mais e melhores traduções. Luiz Roberto Guedes: Porque o grande país de Minas Gerais, por si só, não tinha força política pra fazer lobby em favor de Rosa ou Drummond. E o Brasilzão brucutu estava mais ocupado, naquela altura, em preparar a revolução conservadora e censurar o cinema, o teatro, o livro, a música popular. Só restava ao sambista cantar: “Vai, meu irmão, pega esse avião”. Maria José Silveira: Porque não tem o apelo da grande miséria e dos conflitos extremos, nem o lobby da grande riqueza. Além disso, escrevemos em português. Mayrant Gallo: Jamais um autor brasileiro ganhou o Nobel de Literatura por dois motivos: 1) a barreira da língua (o português, como o húngaro, parece um idioma condenado a um nicho de obscuridade) e, assim, 2) nossos autores acabam restritos a sua comunidade lusófona. Menalton Braff: O português é uma língua sem poder econômico, político, militar ou cultural. Não tem prestígio internacional. Reynaldo Damazio: Talvez falte tradição histórica ao país para competir, já que os critérios são políticos, mas Guimarães Rosa e Drummond mereciam ter ganhado o prêmio. Rinaldo de Fernandes: Porque o português é uma língua periférica. E o português brasileiro ainda mais. Roniwalter Jatobá: Falta um escritor com obra razoável, que tenha projeção internacional. Os membros da Academia Sueca, naturalmente suecos, não lêem português. Tibor Moricz: Prêmio Nobel de Literatura? Um autor brasileiro? Se nem nos descobrimos ainda, como podemos querer que nos descubram? Ora, faça-me o favor! Tony Monti: Prêmios não fazem justiça, não há um critério literário absoluto. Poderia ter ganhado, não ganhou. Não considero esta uma questão importante. Reconheço que ganhar um Nobel poderia melhorar o tratamento dado à literatura no Brasil, poderia chamar a atenção para ela. Mas desconfio que, sem retirarmos o prêmio da lógica do espetáculo, da competição, do jogo, o prêmio não faria a literatura tornar-se hábito de muito mais gente. Walther Moreira Santos: Por que outro país deveria levar a sério a literatura brasileira quando o próprio Brasil não o faz? Whisner Fraga: Azar, falta de interesse político e estratégias econômicas ingênuas.

2. Qual autor brasileiro merece estar na lista de indicações ao prêmio de 2011, e por quê?

Ademir Assunção: Eu. Por quê? Ora, com um milhão e duzentos mil euros eu viveria o resto da minha vida dedicado exclusivamente à literatura. Adrienne Myrtes: Marcelino Freire. O texto dele é dinamite pura, e também porque assim se contemplaria duas categorias, já que ele é quase uma Madre Teresa de Calcutá. Aleilton Fonseca: Nenhum, pois não escrevem para o mundo, mas só para uns cem leitores brasileiros. Mas, se os jurados suecos entendessem o nosso português, João Ubaldo Ribeiro seria o favorito. Branca Maria de Paula: Agora que o Brasil nasceu pro mundo, espero que levem em conta também nossa literatura. Aposto no Chico Buarque e na Nélida Piñon, pois ambos têm estofo e circulam lá fora. Carlos Felipe Moises: Lygia Fagundes Teles, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e outros, porque são muito melhores do que, por exemplo, o Saramago. Edson Cruz: Augusto de Campos. Por seu trabalho poético. Por suas cintilantes traduções. Por seu ensaísmo iluminador. Pelo movimento internacional da Poesia Concreta. Por seus erros de avaliação. Evandro Affonso Ferreira: Autran Dourado, pelo conjunto da obra. Fernando Marques: Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Ferreira Gullar. Os dois primeiros, por alguns dos melhores contos do idioma. Gullar, pelos poemas e ensaios. Guilherme Kujawski: Luiz Bras, por ser o maior representante brasileiro do realismo especulativo. Lima Trindade: Chico Buarque. Tem prestígio internacional, é político e sua extensa obra enche estantes e mais estantes de troféus. Mas se fosse à vera, Ferreira Gullar. Ou Ubaldo. Ou Márcio Souza. E se fosse à vera veríssima, sem politiquês, João Silvério Trevisan. Ou Rubem Fonseca. Ou João Gilberto Noll. Luis Dill: Luiz Ruffato. Pela excelência literária, pela renovação das estruturas narrativas e pela temática abordada em seus romances. Luiz Roberto Guedes: Marçal Aquino me disse uma vez que José J. Veiga merecia um Nobel. Concordo. Jota Jota Veiga tinha fôlego universalista. No presente, um candidato que se impõe é o Ferreira Gullar, por sua obra, trajetória, idade e bela cabeleira prateada. Também acho que ainda está em tempo de nobelizar Oscar Niemeyer. Mas como o Instituto Karolinska gosta de surpreender o público, talvez concedesse o Nobel a Caetano Veloso ou a Paulo Coelho, pelo conjunto da obra. Maria José Silveira: Se contasse autores mortos merecedores, teríamos um pequeno cemitério cheio. Já de autores vivos, perdão, me deu um branco… Mayrant Gallo: O escritor gaúcho Sérgio Faraco, pelos belos e fortes contos que escreveu ao longo de uma sólida carreira literária, que inclui também excelentes ensaios, merece figurar entre os candidatos ao Nobel de Literatura de 2011. Menalton Braff: Manoel de Barros. Pela inventividade de sua poesia, que brota como erva, em toda parte, como a vida. Reynaldo Damazio: Hoje votaria sem titubear em Raduan Nassar (prosa) e Augusto de Campos (poesia), por serem reinventores críticos da língua e da imaginação. Rinaldo de Fernandes: Ronaldo Correia de Brito. Porque seu estilo literário, a sua frase, o emprego preciso das palavras têm um sentido de permanência extraordinário. Roniwalter Jatobá: Três, mas infelizmente fora do páreo porque já estão mortos: Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Tibor Moricz: De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra, outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta… Chico Buarque. Esse não é o país da piada pronta? Tony Monti: Se o critério para merecer o Nobel for uma obra vultosa e significativa, acho que o Ferreira Gullar poderia ser um candidato. Walther Moreira Santos: Se ainda estivesse vivo, Moacyr Scliar merecia figurar na lista de 2011, pelo caráter universal dos seus contos absolutamente impecáveis. Whisner Fraga: Paulo Coelho, por ser o escritor brasileiro de maior sucesso no exterior, o que mais vendeu e aquele cuja obra mais divide opiniões.

LUIZ BRAS, que colabora no Rascunho, escreveu Babel hotel e mora em São Paulo.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

LEITURAS, 14: O INVASOR

“Um homem diante de um deserto pode, ao menos, caminhar em qualquer direção.” Esta é, talvez, a chave para decifrar a metáfora da novela O invasor, de Marçal Aquino, recém-publicada em formato “quase de bolso” pela Companhia das Letras, na coleção Má Companhia.

Alguns leitores podem argumentar que não há nada naquela história para ser decifrado. Mas há sim, pois a narrativa é em primeira pessoa. É um testemunho pessoal do personagem: é ele quem escreve tudo o que viveu, porque está vivo, ou esteve por um tempo, o suficiente para escrever sua história, em algum lugar. Não hesito em afirmar que, no deserto do seu drama, ele tomou outra direção, se corrompeu de todo, pois todo homem tem seu preço, que se mede ou em dinheiro ou em oportunidades. Neste sentido, no desfecho, foi oferecida a Ivan uma nova chance, e ele a agarrou, destituído de seu último fiapo de moral: quem suja as mãos uma vez suja duas.

O argumento de O invasor, que constituiu a base do filme homônimo de Beto Brant, uma das melhores produções brasileiras do final dos anos 1990, põe em pauta a afirmação — terrível — de que qualquer problema no Brasil pode, com proveito, ser resolvido a bala. O diálogo entre as partes faz perder tempo e dinheiro, e não passa de um vício socrático. Se alguém não concorda com você ou o está atrapalhando, elimine-o. Com isso, você ganhará tempo e economizará dinheiro, pois um matador de terceira categoria faz o serviço por qualquer trocado — e vida que segue. É assim entre parentes, entre vizinhos, políticos, sócios. Os jornais, a tevê e a internet estão cheios de histórias parecidas, cunhadas com base nesta fórmula.

E não foi de outro modo que Alaor (Giba, no filme) e Ivan decidiram resolver suas diferenças com Estêvão, sócio de ambos na construtora Araújo & Associados. Pagaram a Anísio para resolver seu problema, matando Estêvão. Só não contavam com o fato de que Anísio, depois, também se tornaria um problema, ao invadir suas vidas. E agora, quem vai matar quem? Retrato de nossa época, e não apenas no Brasil, O invasor é, além de uma ágil narrativa policial, um ótimo exame de quem somos nas situações extremas do cotidiano. Alguns (talvez a maioria) ainda preferem o diálogo, o acerto de contas verbal, mas há quem prefira encomendar um corpo, como se telefonasse e pedisse uma pizza.

domingo, 20 de março de 2011

LEITURAS, 13: MEU TIPO DE GAROTA

De vez em quando lemos um livro que não conhecíamos, de um autor que não conhecíamos, e saímos da leitura renovados para a vida. Obviamente que, para que isso aconteça, é preciso que o livro desperte a nossa sensibilidade tanto pelo assunto abordado quanto pela forma, compreendida esta como a soma de quatro aspectos básicos: estrutura, tom, ritmo e linguagem.

A história de Meu tipo de garota, romance do escritor indiano, mais precisamente bengali, Buddhadeva Bose, é simples e universal. Um trem é obrigado a parar por causa de um acidente na linha. Quatro homens respeitáveis e desconhecidos entre si são obrigados a dividir a sala de espera da estação, por seis horas de uma noite fria, enquanto a ferrovia é desobstruída para o comboio seguir viagem.

Estão ali, no frio, bebendo café e obrigados a entabular algum tipo de conversa para que o silêncio não os oprima, e o tempo não demore ainda mais a se escoar, quando, de repente, a porta se abre, e um jovem casal surge à soleira. Os dois examinam a sala vagamente e decidem não entrar.

A visão do casal desperta nos homens um sentimento novo, de compreensão e derrota perante a vida. Eles também foram jovens e conheceram aquele momento de recém-casados e apaixonados. Um momento tão sublime que dispensa o conforto de uma sala mais ou menos aconchegante em favor da solidão a dois, mesmo num buraco, num canto qualquer da estação.

É então que decidem narrar, cada um a seu modo, a sua própria história de amor. Uma maneira de passar o tempo e igualmente resgatá-lo, como um sorvo de vida, um solvente para a dor de viver. Quatro relatos se seguem: 1) A triste história de Makhanlal, 2) A história de Gagan Baran, 3) O casamento do Dr. Abani e 4) O monólogo do escritor. Histórias de amor, de uma existência comum, cotidiana, de sonhos que se esfumaçam, de fracassos que se instalam, de tempo que se esgota, implacável, de desespero.

Publicado em 1951, quando Buddhadeva Bose (1908-1974) encontrava-se no auge de seu fulgor criativo, este romance enquadrado (com prólogo, quatro histórias distanciadas no tempo e no espaço, e epílogo) é um dos mais importantes trabalhos do autor e da literatura bengali. Um dos trechos que comprovam o valor de ambos, e que funciona como uma isca para o leitor sensível, que vive em busca de obras de qualidade, é a cena em que o casal surge à porta da sala de espera da estação:

"E, sob o escrutínio daqueles quatro pares de olhos, os que tinham feito a porta se abrir ali se detiveram. Era um casal. O rapaz segurava a porta entreaberta; não estava bem visível, mas havia indícios de um rosto, a pele avermelhada de frio, um pulôver marrom tricotado à mão e uma calça de tecido barato. A seu lado uma moça ― quase se aninhando a ele, ainda mais obscurecida. Mal se podia vê-la: apenas um lampejo de cabelo negro, uma orgulhosa risca escarlate no meio da testa, indicando ser casada, o pescoço suave e jovem, a luz branca lhe batendo de lado no rosto. Os dois pararam ali por apenas alguns momentos, disseram alguma coisa baixinho, viraram-se e se foram ― a sensação, porém, foi de uma lufada de ar quente entrando naquela sala de espera hibernal. Sem dúvida eram recém-casados, talvez de alguns meses, talvez um ano, mas estavam perdidos ― ainda ― em seu amor um pelo outro. Aquela leve pausa à porta; as palavras suaves trocadas, ou talvez não trocadas, depois a retirada; com tudo isso deixaram bem claro aos quatro homens de meia-idade que ainda eram habitantes do paraíso, que enquanto tivessem um ao outro não queriam mais nada, mais ninguém".

Raramente lemos um trecho tão sedutor e profuso de imagens vagas e que, paradoxalmente, encerram precisão. Reparem como as frases sugerem dúvida e apelam aos sentidos, com o uso de palavras que surpreendem no contexto e que servem, funcionalmente, para exprimir as incertezas dos quatro observadores quanto ao que veem e como o veem, à meia-luz, na distância, os sentidos embotados pelo cansaço e pelo frio.

Pela maneira como foi cunhado, este trecho é quase um poema, corroborando as palavras de Octavio Paz, segundo as quais todo romance possui, em sua linguagem ― e por sua própria natureza ―, algo de inesperadamente poético.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

LEITURAS, 12: ALBERT CAMUS

Cinco obras tornaram o franco-argelino Albert Camus (1913-1960) um autor mundialmente célebre, nesta ordem: O estrangeiro, O mito de Sísifo, A peste, Calígula e O homem revoltado. Dois romances, uma peça teatral e dois ensaios. Todavia, Camus foi também um grande contista, o que pode ser comprovado pelo volume O exílio e o reino (L'exil et le royaume), publicado em 1957, pelas Éditions Gallimard.

Nos seis contos deste livro, que Camus dedica à sua esposa Francine, o reino é a consciência, e o exílio, o indivíduo, preso ao seu destino e ao meio de sua escalada na vida. Com o propósito de conferir mais universalidade geográfica aos seus relatos, Camus os localiza na Europa, na África e até no Brasil, em meio a situações de conflito político ou existencial. A diversificação de cenários se transfere para a forma das narrativas e o registro de linguagem, que jamais se repetem, demonstrando o quanto Camus era um autor consciente de seu ofício, imaginativo e variado.

O volume, que é sem sombra de dúvida um dos mais importantes e consistentes livros de contos do século XX, inicia-se com A mulher adúltera, relato de uma traição conjugal que não pode ser comprovada nem contestada, pois o amante é a noite, o céu, as estrelas... O conto seguinte, O renegado ou um espírito confuso, desenvolve-se na consciência caótica de um missionário francês confinado a uma África não menos caótica, através de um monólogo que recupera, numa série de flashbacks, uma existência em crise.

Em Os mudos e O hóspede, os relatos centrais e talvez os mais contundentes do conjunto, uma greve sindical mal-sucedida e a colaboração forçada de um professor francês com a causa de sua gente num conflito político na Argélia são os assuntos em questão. No primeiro, os tanoeiros, depois do fracasso da greve, voltam ao trabalho, mas se recusam a falar com o patrão. No segundo, o professor Daru aceita colaborar com o governo, mas o faz oferecendo ao prisioneiro árabe, a quem deve hospedar por uma noite e levar no dia seguinte ao posto da administração francesa, a possibilidade de escolha. Apesar de saber que sofrerá represálias, tanto pelo lado francês quanto pelo árabe, o professor não hesita em agir com base na sua consciência, pois entende que só o indivíduo deve decidir por sua vida, não importa o crime que tenha cometido.

O livro se fecha com dois relatos antípodas: Jonas ou o artista no trabalho, um conto "mais europeu", metáfora da inserção do artista na sociedade, o quanto ele perde artística e individualmente por ser permissivo aos caprichos alheios, e A pedra que cresce, que se passa na Bahia e tem origem nas observações do autor em sua passagem pelo Brasil, anos antes. Se o mundo do primeiro é a sociedade europeia, supostamente desenvolvida e civilizada, o do segundo é o estado mais primitivo e visceral do candomblé, com seus rituais de sacrifício e mistério.

O exílio e o reino é profundo em seus temas, exímio no desenvolvimento artístico de sua proposta e poético em sua linguagem, uma preocupação constante na obra de Camus. Embora narrador extraordinário, e A peste e O estrangeiro comprovam isso, Camus sabe que ambientes, atmosferas, paisagens e estados íntimos só podem ser fixados com precisão e verdade através da poesia. E ele é, sem embargo, um dos mais poéticos prosadores da literatura francesa, um mestre insuperável, num idioma que legou ao mundo escritores do porte de Victor Hugo, Honoré de Balzac, Guy de Maupassant, Gustave Flaubert, André Gide, Jean-Paul Sartre e Georges Simenon, não menos extraordinários e não menos poéticos.

Dois trechos do conto O hóspede, em tradução de Valerie Rumjanek:

"As cidades nasciam ali, brilhavam e depois desapareciam; os homens passavam por lá, amavam-se ou atiravam-se às gargantas uns dos outros, e depois morriam. Nesse deserto, ninguém, nem ele nem seu hóspede, era nada. E, no entanto, fora desse deserto, Daru bem o sabia, nem um nem outro teriam conseguido realmente viver";

"Daru bebia, com sorvos profundos, a luz fresca. Uma espécie de exaltação nascia dentro dele, diante do grande espaço familiar, agora quase totalmente amarelo, sob a sua calota de céu azul".

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

FAHRENHEIT, O FIM

Foram três anos de viagens no tempo e no espaço, através de seis portais: Solaris, Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit.

Dezenas de autores e contos que mostram que a science fiction brasileira tem futuro, apesar do desprezo dos autores (ou "altores") que supostamente praticam "alta literatura", seus leitores preconceituosos e seus críticos de plantão, sempre vigilantes contra a ampliação do cânone. O que eles não sabem é que Stanislaw Lem e Ray Bradbury, por exemplo, integram o cânone de seus respectivos países. Quem já leu Solaris e As crônicas marcianas sabe por quê.

UMA GRANDE QUEIMA DE LIVROS E REVISTAS FOI PROGRAMADA PARA O FIM DO EVENTO! Com o aval do Nelson de Oliveira, mentor do projeto Portal, que inicialmente disse: "Não, de jeito algum. Eu também gosto muito do Ray Bradbury. Mas, no final do evento, tacar fogo na biblioteca, NÃO! Sem chance, gente. Que ideia!"

Mas, depois: "Tá bom, vocês venceram... Eu levo os coquetéis molotovs..."

Clique sobre o cartaz para ampliá-lo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

VÁ E VEJA, 17: FEITIÇO DO TEMPO

Hoje é o Dia da Marmota. Aproveite para assistir ao Feitiço do tempo (1993), dirigido por Harold Ramis (que assina o roteiro com Danny Rubin) e com um excelente desempenho da dupla Bill Murray e Andie MacDowell, que fazem o par romântico. Nos "gêneros fechados", como a comédia romântica e o relato policial de mistério ou enigma, nos quais regras específicas precisam ser cumpridas (por exemplo, na comédia romântica o casal deve, depois de tudo o que passou, terminar junto, ainda que se separe no dia seguinte), um dos grandes desafios para roteiristas e diretores é inovar ou pelo menos variar o entrecho sem destruir a "coerência de fundo". Neste sentido, Feitiço do tempo é ouro puro! Consegue ao mesmo tempo divergir na narrativa, convergindo na forma.

O filme narra a história de Phil Connors, que apresenta diariamente as previsões metereológicas na tevê. Um sujeito amargo, cínico, desrespeitoso e intolerante com todas as pessoas que conhece e desconhece. Um niilista. É escalado para cobrir com sua produtora e um fotógrafo o Dia da Marmota, da cidade Punxsutawney, Pensilvânia, evento que ele despreza e que para ele não passa de um desvario caipira. Mas o inesperado acontece: uma nevasca retém a equipe na cidade, e a segunda noite que ele passa no hotel não avança no tempo; por vários dias, ou talvez semanas, ele acorda sempre no mesmo dia: o Dia da Marmota. Inicialmente, Phil Connors encara isso como uma condenação; posteriormente, como uma grande chance para aprender mais sobre si mesmo e as pessoas, conquistar sua produtora, que ele ama em silêncio, e para, enfim, construir uma vida melhor, evidentemente com valores mais humanos, e orientada por um espírito mais sensível e justo.

Alegoria da condição humana, e por que não dizer do aprisionamento à vida, Feitiço do tempo é original, gracioso e profundo, e consegue nos conquistar a cada minuto (como ao personagem a cada dia), com uma sucessão de repetições. Ao fim, afirma que, se a vida é enfadonha, é porque quem a vive o é. Um filme para assistir todos os anos, em 2 de fevereiro, numa repetição sempre nova da mesma experiência.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

LEITURAS, 11: GUY DE MAUPASSANT

Se o leitor jamais leu Guy de Maupassant, considerado ao lado de Edgar Allan Poe, Anton Tchekhov e Machado de Assis um dos criadores do conto moderno, e quiser de uma assentada ter acesso a um panorama perfeito do que ele escreveu de melhor no âmbito da ficção breve, o livro indicado é Bola de Sebo e outros contos e novelas (Civilização Brasileira, 1970). Com tradução de Lygia Junqueira Fernandes, constam do volume os relatos Bola de Sebo, Pensão Tellier, Miss Harriet, Mademoiselle Fifi, O horla e A herança, todos indiscutivelmente obras-primas da ficção universal. No primeiro texto, Maupassant examina, na figura da prostituta Bola de Sebo, os contextos que favorecem as conveniências sociais: uma simples operação de débito e crédito e cujos maiores objetivos são o bem-estar, o sucesso pessoal e a sobrevivência. Em Pensão Tellier, afirma que os bordéis são necessários e faz Deus entrar na igreja com as prostitutas, como se vivesse entre elas e as perdoasse. Em Mademoiselle Fifi, que é um homem, janota e afetado, o palco é a guerra e seus horrores. Em A herança, talvez o texto mais cáustico da antologia, expõe um caso de gravidez, traição, dinheiro e tribunais, acentuando o caráter frio, calculista e burocrático da vida em sociedade. O horla é simplesmente um dos mais conhecidos contos sobrenaturais do mundo, adaptado para os quadrinhos e, não raras vezes, imitado (ou pelo menos citado) por autores modernos e atuais. Maupassant não quis agradar a ninguém, nem muito menos passar, forçosamente, à história da literatura. Escreveu o que viu, viveu ou imaginou a partir do que viu e viveu, em estilo direto, claro e irônico. Mais de cem contos e novelas e alguns romances formam o seu legado, escrito num período muito curto, de mais ou menos dez anos, até que a loucura o devastasse. Sua obra permanecerá viva e legível, enquanto existir o sol.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 16: DIVÃ DO AMOR

Jake Singer é professor de literatura e frequenta um estranho psicanalista argentino, o Dr. Morales. Ao conhecer a bela viúva Allegra Marshall, sua vida ganha um novo sentido e, pouco a pouco, ele escapa da melancolia tchekhoviana em que está imerso. Mas, como a própria vida, as relações, e em especial as amorosas, não são fáceis. Surgem os incidentes, a pressão paterna, as exigências do seu psicanalista e a tensão que qualquer relacionamento impõe. O pessimismo do contista Raymond Carver paira sobre a cabeça dos amantes, e a indiferença camusiana, apesar de coerente com o absurdo da vida, não é a solução. Divã do amor, mal traduzido no Brasil, pois originalmente intitula-se The treatment, é uma grata surpresa, o tipo do filme que começamos a assistir despretensiosamente e, com poucos instantes, estamos arrebatados. Baseado em romance de Daniel Menaker (que assina o roteiro em parceria com o diretor, Dren Rudavsky), e repleto de citações literárias, com leves influências de Woody Allen, e uma ironia que costura todas as falas, Divã do amor seduz e empolga. Não é uma comédia, como anunciado na embalagem do DVD (às vezes me pergunto, assombrado, quais são os critérios dos distribuidores na classificação dos filmes), é um drama, uma história de amor quase "ordinária, como tantas outras, entre um professor de literatura meio inadaptado à vida e uma mulher frágil, marcada pela recente perda do marido. Sutil, delicado, vivo e literário, The treatment nos conduz à cura dos maus filmes, que não são poucos e geralmente sobram em pretensão, pois são menos eloquentes que tagarelas.

domingo, 16 de janeiro de 2011

PERPLEXIDADE

Esta foto, publicada ontem no IG, é para mim o maior símbolo da dor por que passa o Rio de Janeiro. A perplexidade do cão, fiel à sua dona desaparecida sob a terra e uma cruz tosca, ultrapassa todos nós.

VÁ E VEJA, 15: JUVENTUDE

Domingos Oliveira, diretor de uma das obras-primas do cinema brasileiro, Todas as mulheres do mundo, coloca três homens numa enorme casa de campo, em Petrópolis, e, em meio a boa comida, bebida, música, cinema e literatura, discute assuntos como sexo, masculinidade, a vida, o amor, a juventude, a dor de viver e de amar, as mulheres, o dinheiro, as drogas, os sonhos que aos poucos se evaporam e, por fim, a irremediável velhice cuja culminância é a morte. O desfecho reafirma a ideia de que os homens passam, e a vida permanece, diariamente revitalizada pelo nascer do sol.

Um dos momentos mais importantes do filme, e de certa forma simbólico, é aquele em que a jovem empregada da casa se aproxima de um dos personagens, que, recostado numa poltrona, recuperava-se de um "quase-infarto", e, pegando sua mão, começa a rezar: segundos depois ele se levanta, não sabemos se recuperado pela oração ou reagindo, como ateu ou agnóstico convicto, à "interferência divina".

O estilo de Domingos Oliveira é espontâneo, com câmara na mão, improviso e roteiro repleto de ironias e referências à literatura, ao cinema e ao conhecimento humano, desde os gregos. Uma vez que muito do desenvolvimento de seus filmes se dá através da palavra, do diálogo, não é demais afirmar que seus irmãos de estilo são Eric Rohmer e Woody Allen, dos quais ele se aproxima e ao mesmo tempo se distancia. Aliás, quando Domingos Oliveira estreou com Todas as mulheres do mundo (1967), Woody Allen ainda não havia achado sua arte, e Eric Rohmer vivia indeciso entre a Nouvelle Vague (Minha noite com ela, 1969) e um suposto neorealismo francês, que o marcou com O signo do leão (1959). Domingos Oliveira, por sua vez, começou solitário no Brasil em 1967 e chegou a Juventude, em 2008, fiel a si mesmo e avesso aos modismos de última hora.

Se existe um cineasta brasileiro da atualidade que vale a pena conhecer de ponta a ponta é Domingos Oliveira, e Juventude pode ser, em sentido inverso, o princípio do iceberg.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

LEITURA DE BOLSO, 2: UM NEGÓCIO FRACASSADO

Trinta e oito contos de Anton Tchékhov (1860-1904) organizados, traduzidos e prefaciados por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, agraciada com a medalha Aleksandr Serguêivitch Púchkin, pelos "grandes serviços prestados à divulgação da língua russa", outorgada pela Associação Internacional de Professores de Língua e Literatura Russas. Trinta e oito contos aparentemente de humor do escritor russo que foi um dia chamado de gênio por outro gigante da literatura russa, Tolstói. "Todos nós somos grandes escritores", disse Tolstói a Górki, "mas ele", e apontou Tchékhov, que passeava sozinho, ao largo, na fazenda de Tolstói, "ele é o maior, é um gênio".

Nestes contos, que em geral não vão além de quatro ou cinco páginas, Tchékhov exercita seu olhar impiedoso e sua pena crítica, fixando-se nos tipos humanos da vida russa, como as governantas, os preceptores, os funcionários públicos do alto e do baixo escalão, os militares, os estudantes, os maridos, as esposas infelizes, as adolescentes sonhadoras. Seu humor, vazado de melancolia, é mais irônico que engraçado, e nas entrelinhas das histórias, completamente banais, vai muito de não-dito, de sugerido, de disfarçado e terrível. Dramas, decepções, loucura, traições, dores, amores frustrados, desprezo pela vida humana, desdém pelos subalternos, autoritarismo e exercício de poder, ambição desmedida e a corrupção do funcionalismo público, covardia e canalhice, tudo através de uma lente opaca e que não aumenta nada, pelo contrário: deixa diminuto mesmo, porque assim é a vida.

Num dos contos, uma mulher revela a um escritor (o próprio Tchékhov talvez), durante uma viagem de trem, o quanto sacrificou de si mesma para melhorar de vida casando-se com um velho rico. Mas os anos passaram, ele morreu, e o que lhe restou foi... casar-se com outro velho rico. Tchékhov encerra a narrativa deste horror sem qualquer comentário, cortando para o cotidiano e a natureza: "O leque, quebrado, cobre o rostinho bonito. O escritor apoia sua cabeça pensativa no punho, suspira e se põe a refletir, com ar de psicólogo e especialista. A locomotiva assobia e solta chiados, as cortinas das janelas ficam avermelhadas ao sol poente".

O preço que se paga por esta "guloseima sagrada" e muitas outras é baixo, e o livro compensa em dobro cada centavo: R$13,00.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 14: ROCCO E SEUS IRMÃOS

A estrutura desta obra-prima de Luchino Visconti é a romanesca, ao passo que a maioria dos filmes elege como veículo de realização a forma clássica do conto, que, grosso modo, pode ser resumida assim: 1)prólogo, 2) problema ou conflito, 3) desenvolvimento, 4) auge, 5) desfecho, e 6) epílogo. Quando a forma é a romanesca, tudo se transforma noutra coisa, pois o romance é o gênero de todas as possibilidades. É o gênero informe, destituído de um fluxo ideal e que flerta com outros registros de escrita: a narrativa histórica, o ensaio, o discurso acadêmico, o relato memorialístico, o panfleto político, o texto jornalístico e de publicidade, a redação epistolar, o diário íntimo etc. O romance, inclusive, é o gênero da liberdade no tempo e no espaço. Exemplos: O som e a fúria, de Faulkner, A lei, de Roger Vailland, Dom Carmurro, de Machado de Assis, A colmeia, de Camilo José Cela, Um amor, de Dino Buzzati. Pode ter, e quase sempre tem, vários personagens ou um só, mas o que não pode faltar é a liberdade de criação e expressão.

E é nisso que Rocco e seus irmãos se apoiou. Não é à toa que vários escritores assinam o roteiro. E também não é à toa que o filme se divide em cinco capítulos, cada qual enfocando um dos cinco irmãos, embora o personagem central seja Rocco (interpretado pelo jovem Alain Delon), o mais humano e o mais verdadeiro do grupo, consequentemente o mais romanesco e heróico, de acordo com a fórmula primordial do gênero, que reza que ele vai sofrer de tudo um pouco e, ao fim, se redimir.

Visconti não poupa meios de expressão e faz um filme com humor, dor, amor, ação, drama familiar, luta de boxe, trabalho inútil e fatigante, crime e algum heroísmo, ainda que em silêncio ou tom menor. Um folhetim, por excelência, mas com arte, beleza estética, reflexão sobre o nosso tempo e a condição humana, e cenas maravilhosas que influenciaram cineastas no mundo inteiro (Wong Kar Wai, por exemplo), como a sequência sem falas em que Rocco se encontra com Nadia (Annie Giradot), tomam o bonde e, abraçados, num oásis de ternura e paixão, veem a cidade circular à sua volta, ao mesmo tempo com um olhar de aprovação e outro de ameaça àquele idílio privado de culpa.

Se você quer assistir a um monumental clássico do cinema mundial, de três horas de duração e ao longo do qual todos os nossos sentidos são espicaçados (pois chegamos a sentir o cheiro de lama e podridão humana na cena de estupro, e a provar o sal da pele de Nadia durante a cena de intimidade com Simone, processo sinestésico que somente o rigor pelo detalhe, marca de Visconti, torna possível), Rocco e seus irmãos é a melhor e, talvez, a única opção. Uma aula exemplar de "romance cinematográfico".

sábado, 8 de janeiro de 2011

FAHRENHEIT E A LEITURA IDEAL

Recebi ontem os exemplares de minha cota da Portal Fahrenheit, a última das seis revistas de contos de ficção científica idealizadas e concretizadas pelo Nelson de Oliveira. Confesso que sentirei falta desta recorrente missão: a cada seis meses escrever um conto original no gênero, enviar ao Nelson, esperar aprovação e, por fim, a publicação. Além do prazer de ver o conto impresso, depois de tanto trabalho, afinal de contas não reviso pouco meus textos, há a espera pelos demais relatos, saber o que os outros autores estão escrevendo, como estão pensando o mundo atual pelo ponto de vista da ficção científica.

Na verdade, a literatura, mesmo ambientada no futuro ou no passado, volta-se para o presente, com o propósito de expressá-lo, julgá-lo ou simplesmente ironizá-lo. Se o leitor vai sair transformado da leitura e, com isso, tentar transformar o meio em que vive e o mundo, é consequência de quem é o leitor, de sua formação e de suas expectativas. No tempo em que vivemos, e com a educação que temos (a todo momento questionada por novos e inesperados valores, nem sempre valiosos, com o perdão do paradoxo), a recepção de qualquer texto literário é sempre um enigma, e a tendência de quem lê é, não satisfeito com o que leu, julgar o autor incompetente e seu texto ruim. Há ainda o fato, desalentador, de que muitos leitores não julgam o texto pelo que ele é e apresenta, mas simplesmente pelo que esperam dele. Se este é o tipo de leitura, é melhor não ler.

A leitura ideal é aquela que fornece "a paisagem nova de uma mesma janela". Imaginemos um sujeito que more num lugar ermo e distante e do qual, por um motivo qualquer, não possa sair jamais. Todos os dias, quando acorda e olha pela janela, a paisagem é sempre a mesma, apenas com as variações, preexistentes, das estações do ano: sol, flores, nuvens, chuva etc. Essa paisagem constante é a que a janela de suas expectativas abre, diariamente, pois não há solução para mudá-la, a não ser que ele pudesse partir. O que ele espera, acomodado à sua condição, é o que ele vê, num desenho quase perfeito. No âmbito da leitura é a mesma coisa. Se temos expectativas, conforme nosso gosto ou nossos interesses, "mesmificamos" o que pretendemos ler, e, assim, se por acaso o desenho não coincidir, a leitura não converge. Os "dois desenhos" (texto e leitura) não se encaixam. É como se pela mesma janela de sempre entrasse uma nova paisagem, que nossas expectativas, no entanto, previamente já recusavam. Deste descompasso advêm os julgamentos inexatos e perversos, oriundos da evidência (inconsciente) de que o texto está em desacordo com o que somos. É muito mais fácil, diante da falta de parâmetros, julgar um texto ruim do que julgá-lo pelo que ele é, por ser esta "paisagem nova de uma mesma janela".

Durante a leitura, ao "acordarmos" diante desta nova paisagem, não podemos virar para o outro lado e continuar a "dormir" na expectativa do mesmo amanhã, daquela paisagem de sempre. Naturalmente, alguns dos melhores textos de literatura são os que por sua estranheza nos abrem uma paisagem nova. Mas precisamos estar à janela e com o olhar puro.

Quadro: Edward Hopper (1882-1967).

sábado, 1 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 13: LE BONHEUR

Le bonheur (1965), que recebeu no Brasil o péssimo título As duas faces da felicidade, é um dos mais bonitos, sedutores e cifrados filmes franceses da década de 1960. Dirigido por Agnès Varda, que também assina o roteiro, Le Bonheur constitui uma narrativa completamente aberta a interpretações e significados, além de um exame despretensioso sobre o que é a família, o amor, o sexo, o homem e a mulher.

Uma das reflexões mais visíveis que o filme apresenta, e que mesmo o espectador mais distraído não está longe de alcançar, propõe uma espécie de revisão, em versão moderna, fundada talvez no espírito da contracultura daquela década, do paraíso cristão; como ele poderia ter sido se Adão e Eva, por sua “falta”, não tivessem sido expulsos. Um paraíso onde haveria amor, crianças, trabalho, amigos, fins de semana, passeios no campo, sonecas nas tardes de domingo, amantes e especialmente sexo. Com isso, Varda nos diz, indiretamente, que o paraíso é a própria vida e que, ao nos expulsar daquele lugar aprazível dos primeiros tempos, e que Adão e Eva supostamente teriam maculado, Deus, na verdade, nos devolveu ao verdadeiro Éden: a vida humana. A cobra e a maçã eram, portanto, uma charada.

Agnès Varda, que começou como fotógrafa, nasceu na Bélgica, mas se notabilizou na França. É considerada, hoje, a precursora da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico francês encabeçado por Jean-Luc Godard e François Truffaut, e com seguidores de primeiro momento como Claude Chabrol e Eric Rohmer. Seu estilo neste filme é vívido, claro e espontâneo, lembrando às vezes a “reserva autoral” do seu contemporâneo Robert Bresson. Usa a cor como marcação narrativa e também como representação tanto do verão, cenário edênico do filme, quanto da felicidade do protagonista. Quando a cor se ameniza, é porque a felicidade também se atenua. A música, de um Mozart quase abstrato, contrasta com a atmosfera de cor, luz e encanto que envolve os personagens.

Le bonheur recebeu três prêmios internacionais em 1966: o Louis Delluc, o David Selznick e o especial do Festival de Berlim.