"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

VÁ E VEJA, 19: PRIMEIRO AMOR


As histórias de amor existem desde o princípio do mundo. Representá-las na literatura ou no cinema ― quaisquer que sejam ― implica que se invista na forma. O segredo, portanto, para se alcançar êxito artístico, é trabalhar a linguagem, a estrutura, o tom, ritmo, textura, cor. É com estes atributos que a cineasta Mia Hansen-Love dirigiu um dos melhores filmes franceses deste começo de século, Adeus, primeiro amor, que, na verdade, deveria ser traduzido em português por Amor jovem ou, mais literalmente, Um amor de juventude. O idílio ― trivial, diga-se de passagem ― envolve uma garota de quinze anos, Camille, e seu namorado, Sullivan, alguns anos mais velho. De espírito aventureiro, ele quer viajar para a América do Sul, viver outras histórias, sofrer peripécias e ganhar experiência. Ela, por sua vez, mais sensata e menos sonhadora, deseja apenas amá-lo, chama-o de “meu Romeu” e afirma, sem hesitação, que o rapaz é o amor de sua vida, o que deixa sua mãe perplexa. Mas, de fato, quem mais pode dizer quem é o amor de sua vida senão aquele que ama? Obviamente que, ainda no primeiro terço do filme, eles se separam, e a garota sofre, à espera de seu Romeu, de quem recebe cartas periódicas, até que também estas cessam, silenciando-o. Demonstrando profundo conhecimento do cinema francês desde a Nouvelle Vague, especialmente de Rohmer, Truffaut, Chabrol e Blier, e exercitando de forma natural as influências e seu próprio estilo, a diretora transforma o périplo amoroso de Camille num tour de force, ao qual se acrescenta todo um repertório de recursos estéticos que fazem de seu sofrimento ― e do filme! ― um deleite para os olhos e o espírito. As estações meteorológicas tornam-se as estações da juventude e da vida, as cores de seu estado de ânimo migram para a paisagem e desta para a sua alma, campo e cidade se alternam com suas cores e seus respiros, o choro e a melancolia dão lugar ao mutismo e à impertinência de mudar, superar-se a qualquer custo, e da contenção existencial de início chega-se à expansão. Com o retorno de Sullivan, uma nova fase começa, até o desfecho, metafórico, simbólico, oriental: a vida é como um rio. O amor, sobretudo o amor de juventude, é rito de passagem, uma espécie de organizador da vida. Infelizes os que não passam por ele; bem-aventurados os que o superam.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

É NATAL!


VERSOS DE NATAL

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera de Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

MANUEL BANDEIRA (1886-1968). Ícone da poesia de língua portuguesa no século XX, ao lado de Drummond, Pessoa, Quintana e Cecília Meireles, Bandeira escreveu este poema de Natal em 1939 e o enfeixou com outros no livro Lira dos cinquent’anos, inserido na primeira edição do volume Poesias completas (1940).

Foto: Andréia Gallo.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

ALIEN MUSICAL


Para os fãs de Woody Allen, de cinema e da boa música em geral, uma ótima novidade made in França: CD duplo com os temas musicais de alguns dos melhores filmes do cineasta e ator americano, de Manhattan (1979) a Meia-noite em Paris (2011). Nesta coletânea, tem-se a noção exata de que Woddy Allen é um artista completo e de gosto apuradíssimo. Se lhe sobra completo domínio da narrativa, tanto a literária quanto a cinematográfica, não menos talentoso ele é quando se trata de ouvir bem e selecionar, com precisão, a música que vai compor uma cena ou, não raro, enriquecê-la. Os dois discos são fantásticos, mas, como sou um apreciador incondicional de A era do rádio (1987), me deliciei especialmente ao ouvir quatro dos temas que embalam as historietas deste filme, de Glenn Miller a Carmen Miranda, que foi interpretada pela atriz brasileira Denise Dumont. No entanto, todas as músicas nos transportam para o âmbito do filme ou para a época em que foram compostas ou gravadas. São saborosas cápsulas de tempo e vidas passadas que ingerimos com renovado prazer, a cada vez que as ouvimos. No atual panorama da música baiana, e talvez brasileira, com tanto lixo vingando nas rádios e na tevê, estes dois discos soam como um alien musical. E talvez sejam!