a volta ao Sol
domingo, 28 de fevereiro de 2010
ENCONTRAR-SE NUM LIVRO
a volta ao Sol
domingo, 21 de fevereiro de 2010
NOVELAS IMORTAIS, 2
Ele tem razão, foi uma falta grave, especialmente se levarmos em conta dois aspectos: 1) o fato de que a novela não goza em nosso tempo de muita popularidade, suplantada que é pelo conto, num extremo, e pelo romance, no outro, e só por isso a autora belga merecia ser citada com louvor; e 2) que, sendo esta obra tão recente, entrevemos uma discreta reação de sobrevivência para este gênero, que se recusa a ser conto e não ambiciona se rivalizar com o romance. Admito, portanto, a minha falha, e junto a ela arrolarei outras, não menos graves, e ciente de que, ao transcrevê-las aqui, estarei cometendo outras.
Nos dias que se seguiram ao comentário do Carlos, e conforme fui olhando para as prateleiras das estantes e para dentro de minha cabeça, inúmeras novelas importantes me "acorreram", como se reclamassem, por elas mesmas, a sua presença e o seu prestígio: Ardabiola, de Ievgueni Ievtuschenko, A volta do parafuso, de Henry James, A herança e Bola de sebo, ambas de Maupassant, Olha para o céu, Frederico, de José Cândido de Carvalho, Contramão, de Antônio Olavo Pereira, O mandarim, de Eça de Queiros, O terror, de Arthur Machen, O amante fantasma, de Vernon Lee, Sem sangue e Seda, ambas de Alessandro Baricco, Do mais longe do esquecimento, de Patrick Modiano, A ilha no espaço, de Osman Lins, Férias na neve, de Emmanuel Carrère, O jardim de cimento, de Ian McEwan, Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, O perseguidor, de Julio Cortázar, O sul & Bene, de Adelaida García Morales, Carlota Fainberg, de Antônio Muñoz Molina, Benito Cereno, de Melville, O coração nas trevas, de Conrad, O segredo de Brokeback Mountain, de Annie Proulx, Assim diz Lilá, de Chimo, O sonho de Voltaire, de Jacques Chessex, A pérola, de John Steinbeck, Primeiro amor e Companhia, ambas de Samuel Beckett, O amante e Moderato cantabile, ambas de Marguerite Duras, A outra mulher e Porte de arma, ambas de Emmanuèle Bernheim, Pena de morte, de Maurice Blanchot, A seguinte história, de Cees Nooteboom, Do amor ausente, de Paulo Roberto Pires, Bruges, a morta, de Georges Rodenbach, A caça aos patos, de Hugo Claus, Mademoiselle cinema, de Banjamim Costallat, A virgem e o cigano e A raposa, ambas de D. H. Lawrence, As possuídas (ou Mulheres imperfeitas), de Ira Levin, Noturno indiano, de Antonio Tabucchi, O pastor, de Frederick Forsyth, 1933 foi um ano ruim, de John Fante, A marca e O outro gume da faca, ambas de Fernando Sabino, Luna caliente, de Mempo Giardinelli, A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, O estrangeiro, de Camus (essa não foi um esquecimento, simplesmente a prescindi em favor de A queda, pois não quis, naquele momento, citar mais de uma novela de um mesmo autor), Não haverá mais dores nem esquecimento, de Osvaldo Soriano, Dáfnis e Cloé, de Longo, Todas as manhãs do mundo, de Pascal Quignard, Com o diabo no corpo e O baile do conde d'Orgel, ambas de Raymond Radiguet, Os vagabundos, que reúne três novelas de Górki, O assalto ao banco Levasseur, de Emmanuel Robles, Bonequinha de luxo, de Truman Capote (e acho que a Bípede Falante vai gostar particularmente desta minha lembrança, que vem reparar um intolerável esquecimento), O destino de um homem, de Mikhail Cholokhov, O cavalheiro de São Francisco, de Ivan Bunin, Incidente na estação Krietchétovka, de Soljenitsin, A estepe, de Tchekhov, A exposição das rosas, de Örkény, e um punhado de novelas de Tolstoi, com destaque para A morte de Ivan Ilitch e Senhores e servos, e de Balzac, autor de obras-primas como Uma paixão no deserto.
Quanto às que ficaram ausentes ou esquecidas, esclareço que não é porque não sejam importantes. Simplesmente não foram citadas, porque não podemos totalizar coisa alguma nesta vida, assim como não é possível alcançar o azul do céu.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
FIM DE CASO
Fiel a essa definição, o autor desenvolve uma trama que principia com uma ressalva do narrador à forma como as histórias se iniciam: as escolhas feitas, o mundo em que os personagens vão transitar, as circunstâncias históricas, a atmosfera. Continua como se fosse uma narrativa noire, numa imersão de mistério e enigma; ganha um inesperado sopro com um episódio de guerra, no qual um juramento religioso é acionado e que, doravante, vai mudar a existência dos personagens, conduzindo uma mulher à morte prematura, pelo descaso consigo mesma e pela ausência forçada de seu amante, e dois homens a uma união de amizade cujo núcleo é aquela mulher, amada por ambos. Depois a trama se torna policialesca, com o aparecimento de um detetive particular nada ortodoxo, e por fim adquire significado religioso, com o requinte de deixar em aberto a possibilidade de ter ocorrido um milagre.
E costurando tudo isso o estilo altamente sedutor de Graham Greene, capaz de nos submergir em análises profundas sobre a vida e o mundo, sem que isso implique uma linguagem enfadonha ou panfletária. Ou seja: um romance completo. Não é à toa que Faulkner, que não era dado a elogiar autores contemporâneos, declarou seu entusiasmo e apreço por este livro. Um clássico moderno.
A primeira tradução deste romance no Brasil recebeu um curioso título: Crepúsculo de um romance. Sem dúvida muito mais poético, mas infiel ao original em inglês, mais seco.
As duas versões cinematográficas, embora bonitas e profissionais, não conseguem empolgar o espectador: a primeira (Pelo amor de meu amor, 1955), com Deborah Kerr, enfatiza o caráter religioso do relato, em detrimento da relação entre os amantes, quase sob as barbas do marido; a segunda (Fim de caso, 1999), dirigida pelo sempre decepcionante Neil Jordan, e talvez porque seja muito pretensiosa, dilui o peso da narrativa numa sucessão de quadros exóticos cuja maior atração é a fotografia, escura e difusa.
Já o livro, bem, ele como que nos arrebata e derruba, deixando-nos desde o início com a sensação de que estamos diante de uma joia rara. E estamos.*
*Agradeço a Lidiane Nunes, que me sugeriu fazer uma breve resenha deste romance, do qual somos entusiasmados admiradores.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
NOVELAS IMORTAIS
O primeiro título foi A fera na selva, do anglo-americano Henry James. Vieram a público depois O monge negro, de Tchekhov, Um coração singelo, de Flaubert, O homem da areia, de Hoffmann, Sílvia, de Nerval, O clube dos suicidas, de Stevenson, Bartleby, o escriturário, de Melville, Os sete enforcados, de Andreiev, e Margot, de Musset, este publicado em 1987 e com o qual a coleção repetinamente chegou ao fim. Uma pena. Em resumo: três franceses, dois russos, um alemão e três autores de língua inglesa.
Três idiomas vastos e tradicionalmente respeitados na literatura ocidental ficaram sem representantes na coleção: o italiano, o português e o espanhol. Creio que Fernando Sabino tinha em mente contemplar outros autores de outros idiomas, mas, por algum motivo, a coleção teve que se interromper.
Penso em novelas (gênero que devemos definir aqui, grosso modo, como "romances breves" ou "contos longos") do porte de O alienista, de Machado de Assis, Alves e cia., de Eça de Queiroz, Noites brancas, de Dostoiévski, O capote, de Gógol, O tenente Quetange, de Tynianov, Primeiro amor, de Turgueniev, Aura, de Carlos Fuentes, Filhotes, de Vargas Llosa, Ninguém escreve ao coronel, de García Márquez, Ethan Frome, de Edith Wharton, Juventude, de Conrad, Jana e Joel, de Xavier Marques, Uma vida em segredo, de Autran Dourado, O simples coronel Madureira, de Marques Rebelo, O automóvel, de Herberto Sales, A espingarda de caça, de Yasushi Inoue, A morte e a morte de Quincas Berro d'Água, de Jorge Amado, Agostinho, de Alberto Moravia, Sombras de julho, de Carlos Herculano Lopes, Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas, O urso, de Faulkner, A metamorfose, de Kafka, Fup, de Jim Dodge, O ovo de ouro, de Tim Krabbé, A família Tóth, de Órkény, Miss Corações Solitários, de Nathanael West, Uma paixão no deserto, de Balzac, O grande deus Pan, de Arthur Machen, Adeus, Mr. Chips, de James Hilton, A infância de um chefe, de Sartre, Isabelle, de Gide, Genitrix, de Mauriac, A queda, de Camus, Bom-dia, tristeza, de Sagan, Carmen, de Mérimée, A dançarina de Izu, de Kawabata, Quem perde ganha, de Graham Greene, O mal negro, de Nina Berberova, A hora da estrela, de Clarice Lispector, Ontem, de Agota Kristof, Mimi vai à guerra, de Paulo Francis, As pedras no caminho, de Ruth Randell, O poste a vapor, de Molnár, Na montanha, de Dion Henderson, O retrato de Jennie, de Robert Nathan, A senhora Caliban, de Rachel Ingalls, Balada do café triste, de Carson McCullers, e outros, muitos outros. Do Romantismo ao Contemporâneo.
Que coleção magistral seria essa! Textos breves, contundentes e em formato para se portar no bolso ou na bolsa. Uma coleção rara, que iria satisfazer aos leitores exigentes e também iniciar outros, mais jovens, em obras selecionadas, variadas e de inegável qualidade literária. Que fique a deixa, para algum editor ao mesmo tempo ousado e maluco, "talvez porque o mundo ultimamente ficou óbvio demais".
domingo, 7 de fevereiro de 2010
CRÔNICA, 1
OUTROS INTERESSES
A bem da verdade, não foi um semestre bom. Nem poderia: em pleno verão, época de pouca roupa, sol, praia, música, ócio, brisa...
Quinze alunos. Dois apenas interessados
Havia também a aluna que balançava a perna, de cara para cima, como se ansiosa, a esperar o noivo, que tardasse em demasia, quem sabe por que motivo... Romântica na pele e nos ossos, não suportou o Realismo e, ao receber o resultado da primeira avaliação, foi chorar no banheiro...
Duas outras alunas, durante a entrega dessa mesma prova, irromperam num ataque de riso, incrédulas não propriamente com seu desempenho, mas com a nota. Outras três não queriam saber mais do que já sabiam e passavam toda a aula debruçadas sobre catálogos de vestuário e perfumaria. Ali estava tudo o que elas queriam possuir e almejavam ser: os vistosos acessórios de uma suposta elegância. Sua participação em aula se resumia a um surdo cochicho entre elas mesmas, como se conspirassem, quase em silêncio, contra o professor.
Um aluno era a ausência
Todavia, este ainda não era o aluno mais exótico da classe. A silenciosa Célia o superava. A Célia que não opinava, não discutia, não reclamava, não questionava. Para ela as aulas transcorriam no próprio paraíso. Em salas com ar condicionado, água fresca à vontade, o bom café brasileiro, pãozinho de queijo, biscoitos finos e até bolo, daqueles que não existem mais e que faziam a alegria das crianças nas visitas à casa da avó. E quando olhava para fora, através da janela de cristalino vidro, via crianças brincando na relva, em meio a pássaros e lépidos esquilos, na mais quimérica paz. Ninguém a arrancava de seu silêncio. Nem o ácido Machado, nem o brutal Azevedo, nem o audacioso Caminha, nem mesmo o devasso Júlio Ribeiro. O sexo existente nele – ou ela já o excedera ou então desconhecia, e com uma inocência tal, que seria capaz de adormecer, de súbito, em meio a um adjunto adnominal, uma rara metáfora.
Só uma única vez o professor conseguiu despertar sua atenção, e por uma via surpreendente, quase risível, se não fosse trágica. O semestre já ia pelo fim, e estudava-se o descabelado Augusto dos Anjos. Poeta original, mas soturno, doentio, místico e por demais crédulo da influência dos astros sobre o destino dos homens. Em seu comentário, uma duvidosa exegese de segunda mão, o professor intercalou elementares conhecimentos astrológicos. E, à guisa de ilustração, perguntou a uma das alunas mais interessadas – se é que havia alguma:
– Amanda, qual o seu signo?
A aluna de pronto respondeu, radiante:
– Touro.
– Pessoas obstinadas, teimosas, céticas. Raramente mudam de idéia. Carregam até o fim sua pedra, como Sísifo, mesmo sabendo que poderão sucumbir a qualquer momento. Mas, em geral, são pessoas espirituosas, as taurinas.
A aluna ficou ainda mais radiante. Aquele era um retrato perfeito de sua personalidade, sua exata psicologia. Animada – como, aliás, toda a classe –, ela ia perguntar qualquer coisa, mas nesse instante o professor consultou o relógio e deu por encerrada a aula. Ia aplicar uma prova noutra turma e não queria se atrasar.
Já no corredor apinhado de alunos e professores, a andar apressado, ouviu alguém chamá-lo. Era a silenciosa Célia, que afinal queria lhe falar. Ele nem se lembrava de ter ouvido sua voz calma e quente, naquele semestre... Se ouviu, foram tão poucas vezes – e não direcionada a ele, em conversa trivial com seus colegas –, que ele quase a esquecera.
– Professor! Professor! – ela o chamou de novo, sem conseguir alcançá-lo.
Contrariado, ele se voltou:
– Agora não posso! Vou aplicar uma prova.
– Mas é rápido, professor! Bem rápido!
– Mas não posso... Não posso! – e voltou a andar.
– É rápido! Por favor! – ela gemeu, a fisionomia crispada, em estado de autêntico sofrimento.
Ele parou. Professor sério e preocupado com o destino de seus pupilos, ele supôs, por um instante, que a aluna tinha alguma dúvida em relação a algum conteúdo – e a prova era na próxima semana...
– Está bem, Célia: qual a sua dúvida?
Ela procurou sua melhor face. A mais vívida. E sua voz mais cálida, mais clara, infiel ao seu interior tempestuoso. E pela primeira vez naquele semestre ela articulou uma pergunta. A primeira e, talvez, por toda a sua existência universitária, a única. Sua voz saiu trêmula, hesitante:
– Professor, e eu? Quais as características dos capricornianos?
– …!