O longa-metragem O eclipse, de Antonioni, que integra a Trilogia da Incomunicabilidade, formada ainda por A noite e A aventura, é dos três o mais misterioso e cifrado. A trama, esvaziada de peripécias, acompanha os encontros e desencontros entre Vittoria (Monica Vitti), recém-saída de uma relação amorosa asfixiante, e Piero (Alain Delon), um operador da bolsa de valores de Roma. Pouco interessado em contar uma história, Antonioni concentra-se nos sentimentos e pensamentos dos personagens, que, imersos numa bela paisagem urbana, não chegam a um acordo quanto ao que pretendem um do outro. Mudez, gestos e olhares dizem mais que as palavras, neste filme que é, provavelmente, a obra-prima do cineasta, a suma do seu estilo, marcadamente visual, e de suas pretensões: mergulhar no sentido ou no vazio da alma humana.
"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry
quinta-feira, 30 de abril de 2009
sábado, 25 de abril de 2009
BRINQUEDO PERDIDO
Contato imediato
Ele me disse: "Venha segunda de manhã, vou receber umas galinhas, e então acertamos tudo". Foi exatamente o que ele disse: "receber umas galinhas". E por minha cabeça passou a imagem de um bando de putas invadindo seu escritório. "Você é detetive, não é?", perguntou, quando concordei em ir. "Hein?", insistiu, com impaciência, a voz grave, sólida, de quem está acostumado a ralhar com os subalternos. "Sou e não sou", respondi afinal, com firmeza. Ele ficou em silêncio e depois disse, num surto de cobrança: "Explique". Eu explicaria, mas não por telefone. Ou talvez apenas o fizesse compreender tudo, por uma imagem, uma precisa e feliz imagem. "Segunda-feira então, com as galinhas...", ironizei. Novo silêncio. "Certo, venha, mas venha cedo", ele disse, respeitando todas as vírgulas. E desligou.
Primeira parte do conto Brinquedo perdido, um noir de minha autoria, publicado na Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 48, de Novembro de 2008, e que foi lançada recentemente. O conteúdo da revista inclui artigos, ensaios, contos, crônicas, poemas e textos teatrais. Entre os colaboradores figuram: Ruy Espinheira Filho, Carlos Ribeiro, Hélio Pólvora, Florisvado Mattos, Dorine Cerqueira, Aramis Ribeiro Costa, entre outros.
Ele me disse: "Venha segunda de manhã, vou receber umas galinhas, e então acertamos tudo". Foi exatamente o que ele disse: "receber umas galinhas". E por minha cabeça passou a imagem de um bando de putas invadindo seu escritório. "Você é detetive, não é?", perguntou, quando concordei em ir. "Hein?", insistiu, com impaciência, a voz grave, sólida, de quem está acostumado a ralhar com os subalternos. "Sou e não sou", respondi afinal, com firmeza. Ele ficou em silêncio e depois disse, num surto de cobrança: "Explique". Eu explicaria, mas não por telefone. Ou talvez apenas o fizesse compreender tudo, por uma imagem, uma precisa e feliz imagem. "Segunda-feira então, com as galinhas...", ironizei. Novo silêncio. "Certo, venha, mas venha cedo", ele disse, respeitando todas as vírgulas. E desligou.
Primeira parte do conto Brinquedo perdido, um noir de minha autoria, publicado na Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 48, de Novembro de 2008, e que foi lançada recentemente. O conteúdo da revista inclui artigos, ensaios, contos, crônicas, poemas e textos teatrais. Entre os colaboradores figuram: Ruy Espinheira Filho, Carlos Ribeiro, Hélio Pólvora, Florisvado Mattos, Dorine Cerqueira, Aramis Ribeiro Costa, entre outros.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
POESIA DESSACRALIZADA
Ontem, no recital de Georgio Rios, Paulo André e Thiago Lins, na Praça de Poesia da Bienal do Livro da Bahia, falei com o Lima Trindade que o trio de Feira de Santana faz uma poesia que em outros países, como EUA, França e Argentina, seria aceita como uma arte literária de primeira qualidade, baseada na memória, nos sentimentos pessoais, nas impressões oculares e fortemente influenciada pela linguagem e pelos temas de outros campos do conhecimento humano, como a Filosofia e a Psicanálise. Mas estamos no Nordeste e na Bahia. Aqui, infelizmente, o "típico" e o "local" são qualidades que jamais se exaurem e prosseguem a combater e alijar diferenças estéticas e escolhas individuais. Sem mencionar o fato de que a métrica e a rima consoante (amor\dor) ainda são, para muitos poetas daqui, critérios de valor e o único recurso poético evidente, em detrimento do ritmo, das aliterações, das assonâncias, dos incidentes sonoros, dos vazios e não-ditos, da polissemia. À guisa de exemplo, leiamos o poema abaixo, do poeta norte-americano Douglas Messerli, traduzido por Cláudia Roquette-Pinto.
NÃO ESTAVA AQUI QUANDO O SOL NASCEU
O sonho
num acesso
de pretextos
matutinos
vigia
com pequenos espinhos
o novo dia
findo, mas surgindo
à porta
do profundíssimo
ocaso, nos afina
com o atraso.
(DOUGLAS MESSERLI. In: Primeiras palavras. São Paulo: Ateliê, 1996.)
Poesia humana e sem Deus, embora, como dizia Barthes, sempre uma guloseima sagrada. Um dizer que se diz para não dizer outra coisa. E que é único, sem repetições, nem permanência. Aprecie aquele leitor ou leitora que, sensível, se permita viver outros "eus", outros delírios, outras sonoridades, pois o Universo é ritmo (e a vida humana, uma constante descoberta de si mesma). Sem ritmo, não há poesia, não há vida, sonhos, nada. E o que nos restará, ao fim, é o que as palavras encenam.
domingo, 19 de abril de 2009
CURTA-METRAGEM
Hoje, consultando a esmo um livro de Cecília Meireles com o propósito de coletar um poema para uma oficina que pretendo ministrar, me deparei com esta pequena jóia, que não sei se me é desconhecida ou se esqueci.
DESENHO
Pescador tão entretido
numa pedra ao sol,
esperando o peixe ferido
pelo teu anzol,
há um fio do céu descido
sobre o teu coração:
de longe estás sendo ferido
por outra mão.
Deus, talvez. Traição amorosa ou fraterna. A morte. Não sei. Outra coisa ou força ou solidão ou desespero. Fica o que está e o que imaginamos. A música das palavras e, claro, a imagem, o desenho. O certo é que daria um belo curta-metragem, de cinco minutos − se muito. O pescador lá pescando − céu, mar, nuvens, vento, gaivotas − e, de repente, antes que ele pesque o peixe, uma mão gigantesca o pesca para o espaço.
Foto: Carlos Carvalho.
DESENHO
Pescador tão entretido
numa pedra ao sol,
esperando o peixe ferido
pelo teu anzol,
há um fio do céu descido
sobre o teu coração:
de longe estás sendo ferido
por outra mão.
Deus, talvez. Traição amorosa ou fraterna. A morte. Não sei. Outra coisa ou força ou solidão ou desespero. Fica o que está e o que imaginamos. A música das palavras e, claro, a imagem, o desenho. O certo é que daria um belo curta-metragem, de cinco minutos − se muito. O pescador lá pescando − céu, mar, nuvens, vento, gaivotas − e, de repente, antes que ele pesque o peixe, uma mão gigantesca o pesca para o espaço.
Foto: Carlos Carvalho.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
PIERRE DRIEU LA ROCHELLE
Ao fim de tudo, ele se matou, em 15 de março de 1945. Mas sua sobrevivência permanece, graças a um grupo de leitores fiéis e a um filme dirigido por Louis Malle, Trinta anos esta noite, baseado em seu romance Le feu follet (Fogo fátuo). Viveu sozinho entre dois extremos: a esquerda mais suja e a direita mais parva. À frente da Nouvelle Révue Française, em plena ocupação da França pelos alemães, foi acusado de traidor e capacho dos invasores, pois, se havia escritores eminentes que colaboravam com a revista, é certo que estes se foram debandando, e de súbito La Rochelle ficou só e odiado por muitos. Foi veementemente criticado, sobretudo por Sartre, então na clandestinidade. Quando os aliados chegaram, continuava ele afeito ao seu trabalho e cumprindo suas obrigações, à mercê de uma possível e inevitável vingança, que veio e não veio... Depois de duas tentativas frustradas de suicídio, finalmente suprimiu-se à vida, ingerindo veronal em associação com gás de cozinha, ciente de que “jogara num dos lados e perdera”. Três citações de sua autoria o definem: “Sempre me acusei de ser eu mesmo”; “A fidelidade persiste enquanto persiste o espanto”; “Deus é um humorista. Do amante mais agudamente macho, de repente ele faz uma fêmea. O extremo positivo, ele vira em negativo. Do advertido, faz um invertido. Assim gira a roda”. Conselho: faça como a maioria, não o leia.
domingo, 12 de abril de 2009
CATÁLOGO MAIGRET, 2
MAIGRET E A JOVEM MORTA (Maigret et la jeune morte). Publicado em 1954, este relato promove uma inesperada disputa entre o comissário Maigret e Lognon, o inspetor dito Mal-Ajambrado, que tem complexo de inferioridade e vive com mania de perseguição. Ao mesmo tempo que durante a investigação serve ao comissário, Lognon tenta superá-lo e, desse modo, ser reconhecido como um excelente detetive, sem saber que na opinião de Maigret já o é. O pretexto para essa emulação é a história da jovem Louise Lamboine, que foge de casa em Nice e vai para Paris, onde, depois de passar por muitas privações, é assassinada na solidão de uma noite. Quem era Louise Lamboine? Por que foi morta? Quem a matou? E por quê? O fim da competição entre os dois policiais é marcado por uma sutil ironia: a mesma pista que despacha Lognon para Bruxelas, atrás de um viajante improvável, permite a Maigret resolver o mistério ali mesmo, em Paris. O comissário, contudo, não se vangloria, pois Lognon não cometera nenhum erro: "não há curso de polícia que ensine a colocar-se na pele de uma jovem educada em Nice por uma mãe semi-louca". Mais que uma investigação policial, este romance representa um interessante estudo sobre a inadaptação ao mundo, o abandono e a dor de estar vivo.
A VÍTIMA – "Maigret não confessava a si mesmo que o que mais o intrigava era o rosto da vítima. Conhecia apenas um dos perfis. Quem sabe eram as equimoses que lhe emprestavam aquele ar aborrecido? Parecia uma garotinha mal-humorada. Os cabelos castanhos jogados para trás, muito leves, eram naturalmente ondulados. Sob a chuva, a maquilagem diluíra-se um pouco e, em vez de a envelhecer ou enfear, isso a tornava ainda mais jovem e atraente."
OS SONS DA VIDA – "Escutava Paris despertar pouco a pouco lá fora, ruídos isolados, mais ou menos longínquos, primeiro espaçados, depois formando uma espécie de sinfonia familiar. Os porteiros começavam arrastar os latões de lixo para o meio-fio. Na escada soaram os passos da empregadinha da leiteria que colocava as garrafas de leite diante das portas."
O QUEBRA-CABEÇA – "Louise Laboine era como as chapas fotográficas mergulhadas no revelador. Dois dias antes não existia para eles. Tornara-se depois um vulto azul, um perfil na calçada úmida da praça Vintimille, um corpo alvo no mármore do Instituto Médico-Legal. Agora tinha nome; a imagem que começava a esboçar-se permanecia ainda esquemática."
CHUVA – "Lá em cima, as nuvens deixaram o branco e dourado para se tornarem de um cinzento azulado, e a chuva começou a cair em diagonal, tamborilando no peitoril da janela, enquanto na ponte Saint-Michel as pessoas de repente caminhavam mais depressa, como nos velhos filmes mudos, as mulheres segurando as saias."
LOGNON, O RIVAL – "Queria tanto acertar, sentia tal desejo de se distinguir, que avançava de cabeça baixa, persuadido de que dessa vez provaria o seu valor.
Seu valor era reconhecido. Só ele não o sabia."
IRONIA – "Até sua morte era como que uma ironia do destino. Se a correntinha da bolsa prateada não estivesse enrolada no pulso, Bianchi se limitaria a arrebatá-la e o carro se afastaria a toda velocidade."
A VÍTIMA – "Maigret não confessava a si mesmo que o que mais o intrigava era o rosto da vítima. Conhecia apenas um dos perfis. Quem sabe eram as equimoses que lhe emprestavam aquele ar aborrecido? Parecia uma garotinha mal-humorada. Os cabelos castanhos jogados para trás, muito leves, eram naturalmente ondulados. Sob a chuva, a maquilagem diluíra-se um pouco e, em vez de a envelhecer ou enfear, isso a tornava ainda mais jovem e atraente."
OS SONS DA VIDA – "Escutava Paris despertar pouco a pouco lá fora, ruídos isolados, mais ou menos longínquos, primeiro espaçados, depois formando uma espécie de sinfonia familiar. Os porteiros começavam arrastar os latões de lixo para o meio-fio. Na escada soaram os passos da empregadinha da leiteria que colocava as garrafas de leite diante das portas."
O QUEBRA-CABEÇA – "Louise Laboine era como as chapas fotográficas mergulhadas no revelador. Dois dias antes não existia para eles. Tornara-se depois um vulto azul, um perfil na calçada úmida da praça Vintimille, um corpo alvo no mármore do Instituto Médico-Legal. Agora tinha nome; a imagem que começava a esboçar-se permanecia ainda esquemática."
CHUVA – "Lá em cima, as nuvens deixaram o branco e dourado para se tornarem de um cinzento azulado, e a chuva começou a cair em diagonal, tamborilando no peitoril da janela, enquanto na ponte Saint-Michel as pessoas de repente caminhavam mais depressa, como nos velhos filmes mudos, as mulheres segurando as saias."
LOGNON, O RIVAL – "Queria tanto acertar, sentia tal desejo de se distinguir, que avançava de cabeça baixa, persuadido de que dessa vez provaria o seu valor.
Seu valor era reconhecido. Só ele não o sabia."
IRONIA – "Até sua morte era como que uma ironia do destino. Se a correntinha da bolsa prateada não estivesse enrolada no pulso, Bianchi se limitaria a arrebatá-la e o carro se afastaria a toda velocidade."
quinta-feira, 2 de abril de 2009
VIVER, ESCREVER
Leitores às vezes julgam na escuridão; críticos, na penumbra. Quais as intenções de um livro? Quais as intenções do autor? E do texto? Das frases (sempre um mistério)? Das palavras (nascidas, não raro, de incidentes da própria criação)? E quais são as influências das circunstâncias, do contexto, da contingência histórica? Meio, família, visão de mundo, grau de instrução, realizações pessoais, fracassos, medos e eventuais pressões de natureza sócio-econômica interferem ou não em quem escreve? Segundo Hemingway há uma diferença enorme entre aquele que “vive para escrever” e aquele que “vive de escrever”. Por exemplo, David Goodis, que disse: “No começo, eu queria escrever de modo solene e só abordar os grandes problemas, mas logo aprendi que o problema mais importante era comer, então eu me conformei em escrever o que os editores queriam”. Autor, talvez, dos mais poéticos romances policiais já escritos, Goodis morreu aos 49 anos em conseqüência dos ferimentos numa briga de rua.
Imagem: cartaz de Tirez sur le pianiste (1960), de François Truffaut, baseado no romance Down there (1956), de David Goodis (1917-1967).
Imagem: cartaz de Tirez sur le pianiste (1960), de François Truffaut, baseado no romance Down there (1956), de David Goodis (1917-1967).
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