"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

LEITURAS, 12: ALBERT CAMUS

Cinco obras tornaram o franco-argelino Albert Camus (1913-1960) um autor mundialmente célebre, nesta ordem: O estrangeiro, O mito de Sísifo, A peste, Calígula e O homem revoltado. Dois romances, uma peça teatral e dois ensaios. Todavia, Camus foi também um grande contista, o que pode ser comprovado pelo volume O exílio e o reino (L'exil et le royaume), publicado em 1957, pelas Éditions Gallimard.

Nos seis contos deste livro, que Camus dedica à sua esposa Francine, o reino é a consciência, e o exílio, o indivíduo, preso ao seu destino e ao meio de sua escalada na vida. Com o propósito de conferir mais universalidade geográfica aos seus relatos, Camus os localiza na Europa, na África e até no Brasil, em meio a situações de conflito político ou existencial. A diversificação de cenários se transfere para a forma das narrativas e o registro de linguagem, que jamais se repetem, demonstrando o quanto Camus era um autor consciente de seu ofício, imaginativo e variado.

O volume, que é sem sombra de dúvida um dos mais importantes e consistentes livros de contos do século XX, inicia-se com A mulher adúltera, relato de uma traição conjugal que não pode ser comprovada nem contestada, pois o amante é a noite, o céu, as estrelas... O conto seguinte, O renegado ou um espírito confuso, desenvolve-se na consciência caótica de um missionário francês confinado a uma África não menos caótica, através de um monólogo que recupera, numa série de flashbacks, uma existência em crise.

Em Os mudos e O hóspede, os relatos centrais e talvez os mais contundentes do conjunto, uma greve sindical mal-sucedida e a colaboração forçada de um professor francês com a causa de sua gente num conflito político na Argélia são os assuntos em questão. No primeiro, os tanoeiros, depois do fracasso da greve, voltam ao trabalho, mas se recusam a falar com o patrão. No segundo, o professor Daru aceita colaborar com o governo, mas o faz oferecendo ao prisioneiro árabe, a quem deve hospedar por uma noite e levar no dia seguinte ao posto da administração francesa, a possibilidade de escolha. Apesar de saber que sofrerá represálias, tanto pelo lado francês quanto pelo árabe, o professor não hesita em agir com base na sua consciência, pois entende que só o indivíduo deve decidir por sua vida, não importa o crime que tenha cometido.

O livro se fecha com dois relatos antípodas: Jonas ou o artista no trabalho, um conto "mais europeu", metáfora da inserção do artista na sociedade, o quanto ele perde artística e individualmente por ser permissivo aos caprichos alheios, e A pedra que cresce, que se passa na Bahia e tem origem nas observações do autor em sua passagem pelo Brasil, anos antes. Se o mundo do primeiro é a sociedade europeia, supostamente desenvolvida e civilizada, o do segundo é o estado mais primitivo e visceral do candomblé, com seus rituais de sacrifício e mistério.

O exílio e o reino é profundo em seus temas, exímio no desenvolvimento artístico de sua proposta e poético em sua linguagem, uma preocupação constante na obra de Camus. Embora narrador extraordinário, e A peste e O estrangeiro comprovam isso, Camus sabe que ambientes, atmosferas, paisagens e estados íntimos só podem ser fixados com precisão e verdade através da poesia. E ele é, sem embargo, um dos mais poéticos prosadores da literatura francesa, um mestre insuperável, num idioma que legou ao mundo escritores do porte de Victor Hugo, Honoré de Balzac, Guy de Maupassant, Gustave Flaubert, André Gide, Jean-Paul Sartre e Georges Simenon, não menos extraordinários e não menos poéticos.

Dois trechos do conto O hóspede, em tradução de Valerie Rumjanek:

"As cidades nasciam ali, brilhavam e depois desapareciam; os homens passavam por lá, amavam-se ou atiravam-se às gargantas uns dos outros, e depois morriam. Nesse deserto, ninguém, nem ele nem seu hóspede, era nada. E, no entanto, fora desse deserto, Daru bem o sabia, nem um nem outro teriam conseguido realmente viver";

"Daru bebia, com sorvos profundos, a luz fresca. Uma espécie de exaltação nascia dentro dele, diante do grande espaço familiar, agora quase totalmente amarelo, sob a sua calota de céu azul".

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

FAHRENHEIT, O FIM

Foram três anos de viagens no tempo e no espaço, através de seis portais: Solaris, Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit.

Dezenas de autores e contos que mostram que a science fiction brasileira tem futuro, apesar do desprezo dos autores (ou "altores") que supostamente praticam "alta literatura", seus leitores preconceituosos e seus críticos de plantão, sempre vigilantes contra a ampliação do cânone. O que eles não sabem é que Stanislaw Lem e Ray Bradbury, por exemplo, integram o cânone de seus respectivos países. Quem já leu Solaris e As crônicas marcianas sabe por quê.

UMA GRANDE QUEIMA DE LIVROS E REVISTAS FOI PROGRAMADA PARA O FIM DO EVENTO! Com o aval do Nelson de Oliveira, mentor do projeto Portal, que inicialmente disse: "Não, de jeito algum. Eu também gosto muito do Ray Bradbury. Mas, no final do evento, tacar fogo na biblioteca, NÃO! Sem chance, gente. Que ideia!"

Mas, depois: "Tá bom, vocês venceram... Eu levo os coquetéis molotovs..."

Clique sobre o cartaz para ampliá-lo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

VÁ E VEJA, 17: FEITIÇO DO TEMPO

Hoje é o Dia da Marmota. Aproveite para assistir ao Feitiço do tempo (1993), dirigido por Harold Ramis (que assina o roteiro com Danny Rubin) e com um excelente desempenho da dupla Bill Murray e Andie MacDowell, que fazem o par romântico. Nos "gêneros fechados", como a comédia romântica e o relato policial de mistério ou enigma, nos quais regras específicas precisam ser cumpridas (por exemplo, na comédia romântica o casal deve, depois de tudo o que passou, terminar junto, ainda que se separe no dia seguinte), um dos grandes desafios para roteiristas e diretores é inovar ou pelo menos variar o entrecho sem destruir a "coerência de fundo". Neste sentido, Feitiço do tempo é ouro puro! Consegue ao mesmo tempo divergir na narrativa, convergindo na forma.

O filme narra a história de Phil Connors, que apresenta diariamente as previsões metereológicas na tevê. Um sujeito amargo, cínico, desrespeitoso e intolerante com todas as pessoas que conhece e desconhece. Um niilista. É escalado para cobrir com sua produtora e um fotógrafo o Dia da Marmota, da cidade Punxsutawney, Pensilvânia, evento que ele despreza e que para ele não passa de um desvario caipira. Mas o inesperado acontece: uma nevasca retém a equipe na cidade, e a segunda noite que ele passa no hotel não avança no tempo; por vários dias, ou talvez semanas, ele acorda sempre no mesmo dia: o Dia da Marmota. Inicialmente, Phil Connors encara isso como uma condenação; posteriormente, como uma grande chance para aprender mais sobre si mesmo e as pessoas, conquistar sua produtora, que ele ama em silêncio, e para, enfim, construir uma vida melhor, evidentemente com valores mais humanos, e orientada por um espírito mais sensível e justo.

Alegoria da condição humana, e por que não dizer do aprisionamento à vida, Feitiço do tempo é original, gracioso e profundo, e consegue nos conquistar a cada minuto (como ao personagem a cada dia), com uma sucessão de repetições. Ao fim, afirma que, se a vida é enfadonha, é porque quem a vive o é. Um filme para assistir todos os anos, em 2 de fevereiro, numa repetição sempre nova da mesma experiência.