"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 29 de agosto de 2015

MINHA MÃE E O UNIVERSO

A celebração da vida, na arte de Carybé.
Hoje, se viva, minha mãe completaria 83 anos. Desde que ela se foi, tenho publicado aqui, ano a ano, no seu aniversário, um poema. Desta vez, nenhum me ocorreu.

Não acho que eu a esteja esquecendo. Não. Ou que seu aniversário não seja mais uma data de celebração. Simplesmente, a vida, com seu fluxo irremediável, vai nos engolfando e nos obrigando, forçosamente, a pensar menos no que, de fato, é mais importante para todos nós: as pessoas que amamos e que perdemos, as que estão ao nosso lado, os amigos, os parentes, os prazeres que a arte nos oferece, através de um livro, filme, quadro ou canção etc.

Nada disso pode ser substituído por outra coisa ou outro ser, embora, a cada dia, a estrutura do mundo nos diga o contrário. E o fato de, na farmácia, hoje, ao comprar um remédio, me dar conta de que é dia 29 de agosto, aniversário de minha mãe, me assegura de que ainda não me deixei anular de todo. Que há algo ainda de genuíno e humano dentro de mim. Que ainda não sou como "eles". Sejam "eles" um grupo preciso ou Legião ou só o "sistema", que falha quando quer, e nada se pode fazer.

A verdade é que o aniversário de qualquer pessoa é tão importante quanto a mais importante das datas históricas. Obviamente que há pessoas desprezíveis e inúteis no mundo, e conheço algumas, mas mesmo estas preenchem, em algum momento de suas vidas, o pensamento afetivo de alguém, e isto constitui uma das justificativas para a celebração da vida.

Esta existência entre enganadores e ladrões não vale que nos esqueçamos disso. Eles também foram crianças, filhos e talvez sejam pais, tios, avós e tenham seus amigos. Compõem, em suma, um grãozinho de poeira do Universo e vão, como eu, desaparecer um dia, tornar-se ou não uma imagem benigna no pensamento de alguém, a exemplo de minha mãe.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

POETA-POEMA, 68: Eduardo Mondolfo

O Rio pelo olhar do pintor paulista Gastão Formenti (1894-1974).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

PRECE 105

As crianças não voltaram
do passeio ao futuro.
Seus triciclos viraram iates
viraram louras os bichos felpudos.
Devem ter ficado presas nalgum triunfo.
Nalgum carro esporte atropelando a juventude. Nalguma
ilha deserta com praias circundadas com muros.
Nalguma mansão tomada de parentes
antes que sucumbam. As crianças
jamais voltaram daquelas férias tão curtas.
Homens que iriam tornar-se
viraram reduções de adultos.

EDUARDO MONDOLFO (1956). Poeta brasileiro, nascido na capital do Rio de Janeiro. Cultor de uma poesia que mistura prosaísmo com rigor sonoro e comentários filosóficos com imagens inesperadas, é sem sombra de dúvida um dos mais originais poetas brasileiros de nossa época. Seu livro Preces cariocas (Sette Letras, 1997) constitui um dos melhores volumes de poemas publicados no Brasil nos últimos vinte anos e, paradoxalmente, um dos mais subestimados.

sábado, 22 de agosto de 2015

POETA-POEMA, 67: THIAGO LINS

A arte misteriosa do pintor argentino Xul Solar.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

VENTURA

Pensaram que seu corpo
Não tinha esplendor quando
Pensaram que sua face
Não se refletia como
Pensaram que sua profissão
Era conduzir sonhos
Não pensaram que fosse um homem
Só o descobriram
Quando lhe deram um tiro

THIAGO LINS. Poeta e contista brasileiro, nascido no Ceará, mas radicado em Feira de Santana, BA. Seus poemas e minicontos expressam, com indiscutível simplicidade, a inquietação do sujeito diante de um mundo caótico e desumano. Poema extraído de As peças do relógio (Multifoco, 2012).

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

BRASIL, A BADERNA

Sim à corrupção.
Como previsto, e como era comum na irmã vermelha Venezuela, nos tempos de Chávez, os cidadãos brasileiros pró-Dilma foram às ruas hoje protestar a favor do Governo... E a favor de tudo o que vem acontecendo nos últimos anos, em termos de falcatruas oficiais e corrupção, do Mensalão à Operação Lava a Jato, capitaneados por políticos do Partido dos Trapaceiros.

O bolo é grande e, em nome da suposta Democracia, vai um monte de gente ganhando e ganhando e ganhando.

Na última eleição, uma das promessas vazias da presidente Dilma era investir pesado na educação. E investiu: pagou campanha publicitária para convencer os bobocas de que o Brasil é pátria educadora. Nem ela acredita nisso. E deve rir nos bastidores da sua artimanha.

E os cortes para a educação surgiram, logo no início do segundo mandato. Na UFBA, dia desses, não havia dinheiro nem para pagar a conta de energia. O reitor teve de rebolar. Quem sabe onde e como!

Mas vai tudo bem. Muita gente está apalpando altas somas; a indústria de automóveis, então! A notícia é a de que os bancos públicos vão facilitar empréstimos para salvar o setor das demissões inevitáveis. E os professores à míngua, com salários mixurucas e ainda vitimados pela violência em sala de aula, porque a juventude petista sabe que pode ascender sem mérito algum, basta colaborar, ir às ruas, entoar os cânticos políticos e fazer o jogo que abre portas até para cabos de vassouras, se há cooperação. Belo país teremos no futuro. 

Temo que, um dia, o Brasil se torne um dublê da famigerada Venezuela, onde a constituição, a opinião pública, o congresso, a eleição e tudo o mais sofrem com as manipulações do Governo. Dia virá em que só poderemos ir à ruas de vermelho. E a olhar para o chão ou para cima, como no romance Sombras de reis barbudos, de José J. Veiga. Nos anos 1970, esta obra representava uma alegoria da Ditadura; hoje, mais parece uma proposta do atual Governo, célebre por tirar nada do saco e botar no outro, exceto quando o conteúdo é dinheiro, que vai direto para o bolso.

E um detalhe: as manifestações do último dia 16 foram num domingo; as de hoje, em pleno dia útil, para incomodar. E tome engarrafamentos, dia perdido, horas paradas, estresse, indignação, exaustão, desânimo... Típico de partidos políticos fajutos, cujo maior propósito é promover a baderna. Pois conseguiram.

O Brasil é uma baderna por esquina, e o Governo, do centro do seu cinismo, o primeiro a promovê-la e sancioná-la.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

INÍCIOS EXEMPLARES, 13: John O'Hara

"Nessa manhã de domingo de maio, aquela moça que mais tarde seria motivo de sensação em Nova York acordou muito cedo, para uma curta noite de sono. Um minuto atrás ela dormia, no minuto seguinte ei-la completamente desperta e atolada no desespero. Era um desespero que ela talvez já tivesse sentido mil vezes, nas 365 manhãs do ano. Em geral, a causa do seu desespero era remorso, dois tipos de remorso: o remorso, em suma, de saber que, fizesse lá o que fosse, nada de bom lhe resultaria."

O'HARA, John. BUtterfield 8. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. Tradução de Hélio Pólvora. 306p.

ESTILO. Neste romance, que constitui um dos retratos mais fiéis e crus de sociedade americana dos anos que se seguiram ao fim da Lei Seca, o início parece algo despretensioso e comum, mas em poucas linhas oferece, em filigrana, a dimensão de uma tragédia: a personagem, motivo de sensação mais tarde numa cidade em que tudo é possível e nada surpreende, acorda muito cedo, depois de ter ido dormir muito tarde, e, ao despertar, mergulha no desespero, causado pelo remorso. O que a moça fez e o que fará são as perguntas que o relato terá de responder.

domingo, 16 de agosto de 2015

BRASIL, O LOGRO

Copacabana, prazer e manifestação (foto: Rodrigo Gorosito, Globo)
Em alguns estados e no Distrito Federal, centenas de pessoas foram às ruas hoje protestar contra o Governo brasileiro.

Haverá depois, obviamente, como de hábito, aqueles que irão às ruas, nos dias subsequentes, defender a presidente Dilma e seus correligionários aproveitadores.

Os pilantras, entre os quais estão o ex-presidente Lula, Genoíno, José Dirceu e tantos outros usurpadores do dinheiro público e da consciência dos eleitores, mal chegaram ao poder, puseram as manguinhas de fora e fizeram o que qualquer político, antes, tinha feito e talvez até com mais requinte de desonestidade e cinismo.

Estão, a cada demão de lama, corroendo mais o Brasil. A Petrobras é só o começo. 

São, por assim dizer, traidores: de sua causa ideológica, supostamente partidária, e também da pátria: do sonho de um Brasil melhor e realmente democrático. Muito embora eles falem de democracia o tempo todo, não a praticam.

Aliás, democracia jamais foi o objetivo de nenhum partido de esquerda, quer seja comunista, socialista ou nazista.

Eles condenam as artes. Eles condenam o conhecimento. Eles condenam a liberdade. Eles condenam o amor. Eles condenam Deus, consequentemente as religiões. 

E, convenhamos, sem arte, conhecimento, amor, liberdade e a figura de um Deus, para conferir algum sentido à vida, quando nada mais resta ou tudo o mais fracassou, não sei se vale a pena existir.

Exceto para Fidel Castro, Lula e José Dirceu, que, e não respectivamente, só almejam três coisas: poder, popularidade e dinheiro.

São ingênuos aqueles que afirmam que pegarão nas armas, se Dilma cair. E igualmente ingênuos os que acham que, se ela cair, outro Brasil se erguerá. Talvez, jamais! Toda essa situação é somente superfície de um caos maior e muito mais profundo, que tem origem no caráter do brasileiro, o qual, se esperava, fosse lapidado pela educação. Mas educação no nosso país é um outdoor, grande e pomposo, como ordem e progresso é somente um lema positivista na bandeira.

Mas é preciso fazer alguma coisa. É preciso pegar um desvio, se o caminho levar direto à cratera do vulcão. O que virá depois, bem: "Uma sociedade que coloca a igualdade, no sentido de igualdade de resultados, à frente da liberdade acabará sem igualdade nem liberdade". (Milton Friedman)

Ou, se preferirem: "No primeiro logro, a culpa é do negociante; no segundo, da burrice do freguês". (ditado chinês)

Leia-se, para o primeiro, "político"; e, para o segundo, "eleitor".

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

LITERATURA, CAFÉ E BOM GOSTO

No próximo sábado, na livraria Boto Cor de Rosa, quatro escritores autografarão seus novos livros.

O lançamento coletivo é de responsabilidade da Mariposa Cartonera, que pela primeira vez pousa por aqui.

Atrás do Shopping Barra, na Marquês de Caravelas, 328, sem errada, bem na curva. Há um banco em frente... É só atravessar a rua, com o cuidado, é claro, de olhar para um lado e outro, que os carros não perdoam.

Oportunidade também de achar outros livros, que não se encontram com facilidade na Saraiva nem talvez na Cultura, e degustar um ótimo café.

 Prestigiem. Bom gosto requer um certo esforço.

domingo, 9 de agosto de 2015

Poeta-Poema, 66: Guilherme de Almeida

A arte da pintora brasileira Georgina de Albuquerque (1885-1962).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

RUA

A rua mastiga
os homens: mandíbulas
de asfalto, argamassa,
cimento, pedra e aço.

A rua deglute
os homens: e nutre
com eles seu sôfrego,
onívoro esôfago.

A rua digere
os homens: mistério
dos seus subterrâneos
com cabos e canos.

A rua dejeta
os homens: o poeta,
o agiota, o larápio,
o bêbado e o sábio.

GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969). Poeta brasileiro, nascido em Campinas, SP. De formação romântico-simbolista, migrou para uma poesia de tom mais moderno, por sugestão da Semana de 22. Constitucionalista convicto, esteve na Revolução de 32, como soldado raso, e por isso acabou exilado em Portugal. Cotidianamente, era um sujeito simples, ocupando a função de secretário numa escola de subúrbio. Eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, em 1959. Uma boa seleção de sua poesia está em Melhores poemas: Guilherme de Almeida (Global, 2001).

domingo, 2 de agosto de 2015

INÍCIOS EXEMPLARES, 12: Nabokov

A ousada capa da edição de 1994.
"Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.

Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita."

NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Tradução de Jorio Dauster. 358p.

ESTILO. A confissão lírico-amorosa do narrador, tão patética que contrapõe alma e lama, atinge o ápice ao descrever, sonoramente, o passeio sensual do nome da amada por sua boca, ao pronunciá-lo. Depois, se diverte com os muitos epítetos que ela recebe, conforme o que faz ou onde está, e revela, para assombro do leitor, de forma sutil, en passant, que ela é pouco mais que uma criança. E aí está o aperitivo para um dos mais escandalosos e bem construídos romances do século XX.