"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

AMOR DE MÃE EM TARDES DE OUTONO

Pintura de José Pancetti (1902-1958).
No precioso volume As mais belas páginas da Literatura Árabe, organizado pelo insigne Mansour Challita, e que é uma fonte quase inesgotável de minicontos milenares, há este, de autoria de Al-Asbahani e intitulado:

AMOR DE MÃE

Uma anedota popular árabe conta que uma mãe, a quem perguntaram a qual dos filhos mais amava, respondeu:
"Ao pequenino, até que cresça; ao enfermo, até que cure; ao ausente, até que volte".

Minha mãe, ao mesmo tempo emotiva e cartesiana, era bem assim. E aqui fica este texto, em sua memória, pois hoje, se viva, completaria 81 anos.

Quanto ao belo quadro de Pancetti, é inevitável que ele me faça recordar o tempo em que moramos numa ilha, no RJ. Não era incomum que minha mãe, nas tardes de outono, que não eram quentes nem frias, me levasse, pequeno, a caminhar pela praia. A sensação que tenho hoje, ao me recordar daqueles momentos, é a de que estávamos sozinhos no mundo. Como as duas figuras no quadro. Assim são as lembranças, simples interpretações.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

CINECONHECIMENTO, 5: O VAZIO

"A gente está sempre desprotegido, contra tudo. Qualquer imbecil pode te estragar o dia, o mês, o ano, a vida. Uma notícia de jornal, um automóvel, micróbio, uma casca de banana podem mudar o quadro de sua vida ou acabar com tudo. Um sujeito mais forte que você pode te bater e te humilhar, a qualquer instante. Um louco qualquer pode te dar um tiro, agora, assim, bum!, e acabou. Você nunca consegue dispor de sua própria vida, ser o elemento decisivo dela. No fundo, nós estamos sempre fazendo o que os outros querem. Você tem que trabalhar, tem que estudar, tem que pagar impostos, ter documentos, tem que ir pra guerra e tem que ter dinheiro, roupa, casa, família."

Diz Paulo José para Anecy Rocha, no leito de amor, em As amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri, que sofreu com o descaso e a perseguição dos adeptos do Cinema Novo, por fazer cinema psicológico num país e época em que quase toda a arte era de natureza sociopolítica e, consequentemente, datada.

Os patrulheiros cinema-novistas não o deixavam em paz, por constituir uma voz dissidente e única, cujos filmes escolhiam o indivíduo em detrimento do contexto e do tempo, enfatizando seu estado de ânimo. As angulações são subjetivas, silêncios contrastam com uma trilha sonora abstrata e nervosa, metáforas surgem espontaneamente, ideias entram em choque, a nudez é sempre poética e metonímica, e os pensamentos íntimos dos personagens emergem na tela sem a mediação de qualquer palavra. Noite vazia (1964) e Corpo ardente (1966) formam com As amorosas uma espécie de trilogia do desespero e do vazio.

domingo, 25 de agosto de 2013

VÁ E VEJA, 20: A FONTE DAS MULHERES

Lisístrata (411 a. C.), de Aristófanes (nascido em 445 a. C., morto entre 385 e 380 a. C.), é uma das mais importantes peças gregas do período clássico. Só não é mais cultuada que as célebres tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. E, obviamente, por se tratar de uma comédia, classificada como "gênero menor" por Aristóteles, não recebe a devida atenção do público, da crítica, nem dos estudiosos. O riso, mesmo hoje, ainda é preterido em favor do páthos da tragédia ou do drama. Mas foi em Lisístrata que o cineasta Radu Mihaileanu buscou inspiração para o seu excelente filme A fonte das mulheres (2010). Se na referida comédia grega as mulheres resolvem fazer greve de sexo como forma de protestar contra a guerra e obrigar seus cônjuges e filhos a abandonar as sangrentas batalhas, as mulheres do filme o fazem por uma causa mais prosaica: forçar seus maridos a se dirigir à fonte para pegar água, preservando-as, assim, de um esforço maior, que, em estado de gravidez, prejudica-as gravemente. Porque presencia uma de suas vizinhas cair, ao descer da montanha com o peso de dois baldes de água, e perder o filho que trazia no ventre, Leila sugere que todas as mulheres façam "greve de amor", até que seus maridos se prontifiquem a buscar água ou consigam que o Governo a canalize ao centro da aldeia. Com este argumento, A fonte das mulheres promove um debate acerca de importantes questões, como a condição da mulher árabe, sempre vista à sombra de uma suposta supremacia masculina e à qual veta-se o direito à voz e à opinião, bem como ao conforto e ao conhecimento. No auge de sua heterodoxia, o filme propõe que se proceda a uma leitura crítica do Alcorão, seguida de uma revisão dos dogmas impostos, adotados convenientemente para o proveito dos homens. Pelos lábios de Lisístrata, aprendemos que "onde está o tesouro está o poder". Pelas atitudes daquelas mulheres árabes, seus maridos compreendem, de uma vez por todas, que, se o tesouro da fonte é a água, o das mulheres é o "amor".

sábado, 17 de agosto de 2013

CENTENÁRIO DE ALBERT CAMUS, 2

Além de romancista, contista e ensaísta, Albert Camus (1913-1960) foi polêmico dramaturgo. Quatro peças o tornaram um importante escritor de teatro e muito respeitado: O estado de sítio (1948), Os justos (1949), Calígula (1945) e O equívoco (1944). As duas últimas foram reunidas num só volume pela editora portuguesa Livros do Brasil, de Lisboa, em edição sem data. Pelo que se sabe, é a única em língua portuguesa.

Em Calígula, Camus transforma o imperador romano, um dos mais cruéis da história de Roma, num homem solitário, amargurado pela morte de sua irmã Drusilla, seu único amor, e sempre à procura de uma liberdade plena, simbolizada pelo exercício absoluto do poder: "Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, necessidade da Lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo", ele decreta logo no início. Daí por diante, confisca o dinheiro e os bens dos romanos, humilha-os, tripudia dos Deuses, das leis e dos poetas, desdenha da opinião alheia, pratica a tortura psicológica e principalmente mata, sem piedade. Nada muito diferente das práticas dos governantes contemporâneos, com a diferença de que, em Calígula, há um propósito "mais elevado", uma certa filosofia do caos, que o faz afirmar: "Acabo de compreender, enfim, a utilidade do poder. Ele dá as suas oportunidades ao impossível. Hoje, e por todo o tempo que virá, a minha liberdade não tem fronteiras".

Em O equívoco, cuja trama já aparece esboçada num breve trecho de O estrangeiro, Camus ironiza com o tema bíblico da volta do filho pródigo e escreve um de seus dramas mais gélidos e sombrios: depois de vinte anos ausente, Jan volta para o lar, a pensãadministrada por sua mãe e sua irmã; quer lhes fazer uma surpresa e, como não é reconhecido, registra-se com um outro nome; ele pretende ajudá-las financeiramente, mas não sabe que elas vivem há anos de roubar e assassinar os moradores da pousada, sobretudo os homens, e ele pode ser a próxima vítima... Ironicamente, uma das falas capitais da peça, pronunciada pela mãe de Jan, é: "É mais fácil matar o que não se conhece". Ou seja, o filho. Como em O estrangeiro, o responsável pelos atos da irmã é o sol, tropical e apaziguador, capaz de aliviar-lhe a inércia e a solidão, e sob o qual espera obter, afinal, a felicidade, longe de um "país de nuvens". Já a mãe, ela mata para descansar, chegar a um termo, como o protagonista de A morte feliz, romance póstumo de Camus e uma de suas melhores obras: a riqueza que ambos adquirem por matar justifica seu ato.

Nas duas peças, de caráter reflexivo, Camus emprega a ação dramática com o propósito de expor o seu pensamento, em especial a ideia de que a existência humana é absurda em si, uma vez que existe a morte, destino incontornável. Incapaz de driblá-la, o homem fica a meio caminho entre uma liberdade relativa e a felicidade possível, jamais alcançada: "Os homens morrem e não são felizes". Este é um de seus aforismos mais célebres e que, pronunciado por Calígula, adquire um sentido dúbio: de lamento e de sarcasmo. E é igualmente pelos lábios de Calígula que se chega a uma afirmação ainda mais cáustica, muito embora utópica, para não dizer verdadeira: "Este mundo não tem importância, e quem reconhece isto conquista a sua liberdade". Liberdade, desprezo e, talvez, felicidade têm uma só face.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

TRECHOS SINGULARES

Estudo de capa, não aprovado.
Emmanuel Mirdad, um dos mentores da Festa Literária de Cachoeira (FLICA), postou em seu blogue, alguns trechos de sua preferência, extraídos de Cidade singular (Kalango, 2013). Recentemente, conversamos sobre o livro, e ele me falou dos contos que mais apreciara, expondo os motivos e comentando algumas passagens. Como autor, sempre me surpreendo com os efeitos que um conto provoca no leitor, bem diversos da motivação que me levou a escrevê-lo. Lembro-me de Mirdad me perguntar sobre o conto Muros, ao que eu respondi que era um dos meus favoritos, mas, certamente, por uma razão completamente diferente da que ele ou outro leitor viesse a apontar. Na verdade, como falei que gostava de Muros, ele não disse nada, talvez porque, por elegância, não quisesse confrontar o autor. Minha preferência por Muros se justifica pela forma, especialmente o tom das frases, o ritmo da trama e o uso do tempo verbal presente, que confere ao relato uma expressividade poética e onírica. Não se assemelha em linguagem e estrutura a nenhum dos demais contos e, por isso, é quase um ente estranho ao conjunto, o que me parece o bastante para ressaltá-lo. Quem quiser ler os textos pescados de Cidade singular pelo Mirdad, acesse aqui

terça-feira, 6 de agosto de 2013

LEITURAS, 33: ARTE DO ROMANCE

A capa forja o livro dentro do livro.
Dois escritores franceses são convidados pela embaixada da França a ir ao Cairo, no Egito, participar de algumas atividades literárias. Lá, se misturam às pessoas, vivem o cotidiano noturno da cidade (em nada parecido com o do Ocidente), enchem a cara, envolvem-se numa disputa amorosa, encetam um debate sobre religião e, enfim, mais experientes como homens e escritores, voltam a Paris. Depois de um tempo, um dos autores recebe pelo correio o exemplar de um romance que narra a história vivida por eles durante aquela temporada no Egito. Supostamente o autor é o outro escritor, escamoteado sob um pseudônimo. Ou talvez a bela e intrigante Lamia, pivô dos interesses amorosos de ambos lá no Cairo. O livro, tão logo chega às livrarias, ecoa como uma bomba na imprensa francesa, por causa do seu ataque ao islamismo. Tal argumento, cheio de peripécias, é só um pretexto para Florian Zeller escrever um romance cujo propósito é refletir sobre o papel do escritor na sociedade, seu compromisso com a verdade e seu direito de romancear qualquer acontecimento, seja ele de que natureza for. Com A fascinação pelo pior (Rio de Janeiro: Rocco, 2008), obra elegantemente bem escrita (uma característica da ficção francesa contemporânea), Zeller propõe que a literatura, e em especial o romance, é o lugar da liberdade, a única modalidade de texto em que tudo pode ser dito e que é um erro da parte dos leitores supor que a ficção constitui um espelho do pensamento e da personalidade do autor. Bem, às vezes isso pode ocorrer: há os que insistem, depois de tudo, em repetir a si mesmo, e ainda mais hoje, quando se cobra do autor engajamento com as causas mais bizarras e uma postura politicamente correta que beira o delírio. Mas, em geral, o que o autor representa num romance é uma verdade possível, não a Verdade, e sua permanência e efeito reais terminam quando fechamos a obra. No rastro de Milan Kundera, Zeller afirma que o romance é uma arte "incompatível com qualquer espírito religioso, pois ela é, essencialmente, uma profanação. O romance torna intangível tudo aquilo que ele mesmo toca e que remete, assim, à ambiguidade moral do homem e à relativização fundamental das coisas. Aqueles que acreditam ser os donos da verdade e que não admitem contestações sentem-se, portanto, diretamente ameaçados pela arte do romance. Por isso têm um interesse cruel na sua destruição. Através de Rushdie, o que o imã queria eliminar era a própria arte do romance como um todo".

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

LEITURAS, 32: HELENA TERRA

Capa: Humberto Nunes.
Conheci a Helena Terra através do blogue Bípede Falante, que, infelizmente, ela encerrou. Desde o princípio, percebi que ela escrevia bem e que seus pontos de vista diferiam dos demais blogueiros que eu acompanhava. Além do mais, alimentávamos, ela e eu, uma predileção literária: os autores húngaros. Sándor Márai, Ferenc Molnár e seus compatriotas não são de gastar palavras e, em geral, nos impõem uma experiência primordial, que excede a estética europeia, e da qual não conseguimos, jamais, nos libertar. Uma vez lidos, serão sempre admirados, revisitados e relidos. E foi assim, com estas lembranças, que abri o seu A condição indestrutível de ter sido (Porto Alegre: Dublinense, 2013), feliz com o fato de ela publicar sua primeira narrativa longa, mas com receio de, por algum motivo, não conseguir apreciá-lo. Os mais difíceis julgamentos são aqueles em que um segundo princípio, neste caso a amizade, está em jogo. Mas foi o contrário. Li-o inteiramente durante uma madrugada. A história de amor que surge em meio às navegações da internet e alcança o corpo a corpo me arrebatou, e não fosse o seu estilo, econômico e reflexivo, ainda assim eu a admiraria, pois as histórias de amor são as que ficam. Na linhagem de Henry James, pois abdica de cenários e ação em favor das ideias e dos torneios dialéticos, Helena Terra reafirma a minha convicção de que literatura é linguagem, frases bem construídas, ideias em debate, gozo estético, arrebatamento e metáforas. Não é senão por isso que nos entregamos à leitura de poesia e ficção. Outro aspecto a se ressaltar é a estrutura da trama, que, no desfecho, resgata um motivo apenas esboçado no início, surpreendendo o leitor, que, naquele momento, teme por alguma solução mais fácil. E o mais edificante é que ela não o faz de maneira postiça: a conclusão é tão espontânea e vívida, que, de imediato, sabemos que é a própria existência que a esculpe, com seu fluxo implacável. Todas as ficções só encerram um propósito: representar a vida, e é esta que acaba por moldar as histórias, por mais estranhas que sejam. Pensemos somente em Os ratos, de Dyonélio Machado, ou em Noite, de Érico Veríssimo. Seus protagonistas pouco interferem e, quando o fazem, é por efeito dos cordames que os movem. Minha felicidade, portanto, foi plena: por admirar a obra em si e por saber que, de alguma forma, durante aqueles anos que acompanhei o Bípede Falante, testemunhava, indiretamente, a autora surgir. E para ficar, obviamente, pois não são de curto alcance os autores que escrevem trechos assim: "Desde o princípio, a vida se transforma conforme a incidência de luz; as pessoas, com a chegada de outras. Uma chegada é um enigma". Saudemos a chegada de Helena Terra, uma escritora por quem expresso aqui a minha admiração.