"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 18 de maio de 2011

LEITURAS, 16: ANATOMIA DE UM CRIME

De volta à estante, o romance que inspirou um dos melhores filmes policiais de todos os tempos, Anatomia de um crime (1959), de Otto Preminger, com James Stewart, Lee Remick e Ben Gazzara, em início de carreira. O filme foi indicado a sete categorias do Oscar, inclusive a de melhor filme.

O livro homônimo estava esgotado no Brasil há várias décadas, era uma raridade editorial só encontrada nos sebos e a preços pouco convidativos. A José Olympio Editora acaba de lançar uma nova edição, com tradução da escritora Sônia Coutinho. Escrito por um ex-promotor, Robert Traver, e baseado numa história real, Anatomia de um crime se passa numa cidadezinha do Meio-Oeste americano, onde o advogado Paul Biegler, com a carreira comprometida, tem a oportunidade de se reabilitar perante a sua categoria profissional, defendendo o tenente Frederick Manion, acusado de assassinar o homem que supostamente teria estuprado sua esposa. Mas o caso não é assim tão simples. Houve realmente estupro? O que houve, na verdade? E qual é o grau de envolvimento da mulher com o homem que foi morto?

Se Alfred Hitchcock afirmava que livros ruins davam bons filmes, o inverso também é verdade. Mas o caso aqui é de um ótimo livro que originou um ótimo filme. Em tempos de romances de qualidade duvidosa, e pretensiosos filmes policiais que, ao fim, não passam de um saco de tiros, sopapos, correria, perseguição de carros e explosões pirotécnicas, leia e depois veja Anatomia de um crime. A perenidade de ambos não é por acaso.

terça-feira, 17 de maio de 2011

LEITURAS, 15: CONTOS À QUEIMA-ROUPA

Como qualquer gênero literário que subverte a tradição, o miniconto também já possui seus inimigos. Recentemente, em conversa com um escritor numa livraria, o miniconto veio à baila, e o autor, sem meias palavras, me disse: "Miniconto é bobagem, porcaria, coisa de quem não tem assunto nem sabe escrever; não é literatura". Com efeito, também não tinham assunto nem sabiam escrever Julio Cortázar, Jules Rénard, Jean Cocteau, Yasunari Kawabata e tantos outros. E eles não foram literatos, não fizeram literatura.

Ora, simplesmente o miniconto está incomodando, por estes motivos: 1) é um gênero jovial, que atrai os jovens e conquista leitores; 2) vai aos poucos se tornando popular, pois agrupa elementos de outros gêneros, narrativos ou não, como a poesia, o cinema, a piada, o acontecimento cotidiano, a propaganda etc.; 3) é um gênero que se desenvolve com o que está ao alcance das mãos, em assunto (a realidade, a vida) e forma (todas as formas narrativas, todos os tons, todas as expressões de arte e cultura); 4) "condensado ao mínimo", faz do riso, do sarcasmo e da ironia o seu ganha pão; 5) quando não é direto, é metafórico, e nas duas maneiras impacta o leitor.

Emergente das Minas Gerais, que tem larga tradição em prosadores, nos chega pela coleção Três por Quatro (editada pelo Wilson Gorj), da Multifoco, o volume Contos à queima-roupa, de Arth Silva. Mais um achado da coleção, que já alcança seu décimo título. Arth Silva divide seu livro em duas seções: os minicontos (p. 11 a 63) e os contos curtos, mais tradicionais (p. 64 a 98). Em ambas, numa linguagem despojada de atavios, com a ironia numa mão e o riso na outra, o autor destila sua verve. São muitos os contos a destacar. Entre os contos curtos, me agradaram sobretudo 10 minutos, Sinal vermelho e Ele e Ela, pelos seus temas (respectivamente, a infância, a violência no trânsito e a espera pelo amor), sua poesia ("A sirene dispara alto. Próximo ao local, sobre os travesseiros, as crianças sonham com o grito de um enorme dragão"), sua dor ("O choque partiu ao meio a sirene, que nunca mais voltará a funcionar"). São contos reais, duros. Ao mesmo tempo, reflexões sobre a existência, metáforas do sofrimento humano.

Os minicontos, por sua vez, se alimentam dos nossos costumes patéticos. Entre os muitos que merecem destaque, este: "Certo dia, o C saiu engravatado. Apelidaram-no de Cedilha. aCanhado (sic), nunca mais conseguiu comeÇar (sic) uma frase". Ou este outro: "Recém-nascido, e sua beleza já era admirada. Todos diziam que seu nariz era o da mãe; os cabelos, da avó; os olhos claros, de um tio-avô europeu. O bebê Frankenstein sorria com os lábios do pai". Ou ainda este, mais cruel: "Destemido, colocou o colete à prova de balas e subiu o morro. Acertaram-lhe na cabeça". É, os bandidos também têm seus atiradores de elite.

Há ainda a série de quatro minicontos que ironizam o hábito ou a moda (e estar fora da moda não é estar fora do mundo), em nossa época, de tornar público o que é particular, como se o mais simples dos mortais fosse um astro ou estrela a atrair todos os olhares. Não é. A questão não vai além disso: a pessoa se encerra dentro de casa e expõe na internet quem é ou, mais frequentemente, quem não é. E amigos elogiam, inimigos disparam ofensas. Vida que segue, em mentiras e, às vezes, verdades:

MUNDO MODERNO [parte 3]

O parto estava feito.
Cordão umbilical cortado e banho dado.
Só faltava agora registrá-lo. No Orkut. (ARTH SILVA)

terça-feira, 10 de maio de 2011

MAIS CARTAS BAHIANAS


A coleção Cartas Bahianas, da P55, se acresce de mais dois autores: Cláudia Barral e Ruy Espinheira Filho. Prestigiem!

Cliquem na imagem, para ampliá-la.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

EXERCÍCIOS DE IMAGINAÇÃO

1. Por que o Brasil ainda não levou o Nobel de Literatura?

Ademir Assunção: Porque o Brasil é um país distante dos países nórdicos, é habitado por chimpanzés e, ainda por cima, seus escritores escrevem em português. Adrienne Myrtes: Porque Marcelino Freire ainda não foi traduzido na Suécia. Aleilton Fonseca: Porque os jurados suecos não sabem ler em português (risos). Seriamente: porque nossos autores não escrevem sobre temas de nítido interesse mundial. Branca Maria de Paula: Politicamente, é mais fácil ler chinês do que português. Machado de Assis, Rosa e Clarice: tupiniquins demais? Quando o Nobel enfim acontece, atraca na Metrópole, claro. Carlos Felipe Moises: Porque Drummond, Vinicius, Cecília, Rosa, Osman Lins, João Cabral e outros nunca tiveram o apoio de um lobby político internacional. Edson Cruz: Tem a ver com a língua, com a recepção, com a ausência de uma política cultural externa em nível governamental, com as não-traduções patrocinadas para outras línguas. O resto nós temos. Evandro Affonso Ferreira: O Brasil é fraquinho nesse departamento de política nobelística. Guimarães Rosa merecia ter ganhado. Fernando Marques: O Nobel também premia escritores de países emergentes ou pobres, mas só quando já avalizados por editores europeus ou americanos. Vamos lá? Guilherme Kujawski: Porque ainda não apareceu nenhum escritor bombástico. Lima Trindade: Porque se um escritor brasileiro ganhasse, haveria um número alarmante de haraquiris nas Letras Nacionais. Luis Dill: Porque nossos grandes autores ainda não receberam mais e melhores traduções. Luiz Roberto Guedes: Porque o grande país de Minas Gerais, por si só, não tinha força política pra fazer lobby em favor de Rosa ou Drummond. E o Brasilzão brucutu estava mais ocupado, naquela altura, em preparar a revolução conservadora e censurar o cinema, o teatro, o livro, a música popular. Só restava ao sambista cantar: “Vai, meu irmão, pega esse avião”. Maria José Silveira: Porque não tem o apelo da grande miséria e dos conflitos extremos, nem o lobby da grande riqueza. Além disso, escrevemos em português. Mayrant Gallo: Jamais um autor brasileiro ganhou o Nobel de Literatura por dois motivos: 1) a barreira da língua (o português, como o húngaro, parece um idioma condenado a um nicho de obscuridade) e, assim, 2) nossos autores acabam restritos a sua comunidade lusófona. Menalton Braff: O português é uma língua sem poder econômico, político, militar ou cultural. Não tem prestígio internacional. Reynaldo Damazio: Talvez falte tradição histórica ao país para competir, já que os critérios são políticos, mas Guimarães Rosa e Drummond mereciam ter ganhado o prêmio. Rinaldo de Fernandes: Porque o português é uma língua periférica. E o português brasileiro ainda mais. Roniwalter Jatobá: Falta um escritor com obra razoável, que tenha projeção internacional. Os membros da Academia Sueca, naturalmente suecos, não lêem português. Tibor Moricz: Prêmio Nobel de Literatura? Um autor brasileiro? Se nem nos descobrimos ainda, como podemos querer que nos descubram? Ora, faça-me o favor! Tony Monti: Prêmios não fazem justiça, não há um critério literário absoluto. Poderia ter ganhado, não ganhou. Não considero esta uma questão importante. Reconheço que ganhar um Nobel poderia melhorar o tratamento dado à literatura no Brasil, poderia chamar a atenção para ela. Mas desconfio que, sem retirarmos o prêmio da lógica do espetáculo, da competição, do jogo, o prêmio não faria a literatura tornar-se hábito de muito mais gente. Walther Moreira Santos: Por que outro país deveria levar a sério a literatura brasileira quando o próprio Brasil não o faz? Whisner Fraga: Azar, falta de interesse político e estratégias econômicas ingênuas.

2. Qual autor brasileiro merece estar na lista de indicações ao prêmio de 2011, e por quê?

Ademir Assunção: Eu. Por quê? Ora, com um milhão e duzentos mil euros eu viveria o resto da minha vida dedicado exclusivamente à literatura. Adrienne Myrtes: Marcelino Freire. O texto dele é dinamite pura, e também porque assim se contemplaria duas categorias, já que ele é quase uma Madre Teresa de Calcutá. Aleilton Fonseca: Nenhum, pois não escrevem para o mundo, mas só para uns cem leitores brasileiros. Mas, se os jurados suecos entendessem o nosso português, João Ubaldo Ribeiro seria o favorito. Branca Maria de Paula: Agora que o Brasil nasceu pro mundo, espero que levem em conta também nossa literatura. Aposto no Chico Buarque e na Nélida Piñon, pois ambos têm estofo e circulam lá fora. Carlos Felipe Moises: Lygia Fagundes Teles, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e outros, porque são muito melhores do que, por exemplo, o Saramago. Edson Cruz: Augusto de Campos. Por seu trabalho poético. Por suas cintilantes traduções. Por seu ensaísmo iluminador. Pelo movimento internacional da Poesia Concreta. Por seus erros de avaliação. Evandro Affonso Ferreira: Autran Dourado, pelo conjunto da obra. Fernando Marques: Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Ferreira Gullar. Os dois primeiros, por alguns dos melhores contos do idioma. Gullar, pelos poemas e ensaios. Guilherme Kujawski: Luiz Bras, por ser o maior representante brasileiro do realismo especulativo. Lima Trindade: Chico Buarque. Tem prestígio internacional, é político e sua extensa obra enche estantes e mais estantes de troféus. Mas se fosse à vera, Ferreira Gullar. Ou Ubaldo. Ou Márcio Souza. E se fosse à vera veríssima, sem politiquês, João Silvério Trevisan. Ou Rubem Fonseca. Ou João Gilberto Noll. Luis Dill: Luiz Ruffato. Pela excelência literária, pela renovação das estruturas narrativas e pela temática abordada em seus romances. Luiz Roberto Guedes: Marçal Aquino me disse uma vez que José J. Veiga merecia um Nobel. Concordo. Jota Jota Veiga tinha fôlego universalista. No presente, um candidato que se impõe é o Ferreira Gullar, por sua obra, trajetória, idade e bela cabeleira prateada. Também acho que ainda está em tempo de nobelizar Oscar Niemeyer. Mas como o Instituto Karolinska gosta de surpreender o público, talvez concedesse o Nobel a Caetano Veloso ou a Paulo Coelho, pelo conjunto da obra. Maria José Silveira: Se contasse autores mortos merecedores, teríamos um pequeno cemitério cheio. Já de autores vivos, perdão, me deu um branco… Mayrant Gallo: O escritor gaúcho Sérgio Faraco, pelos belos e fortes contos que escreveu ao longo de uma sólida carreira literária, que inclui também excelentes ensaios, merece figurar entre os candidatos ao Nobel de Literatura de 2011. Menalton Braff: Manoel de Barros. Pela inventividade de sua poesia, que brota como erva, em toda parte, como a vida. Reynaldo Damazio: Hoje votaria sem titubear em Raduan Nassar (prosa) e Augusto de Campos (poesia), por serem reinventores críticos da língua e da imaginação. Rinaldo de Fernandes: Ronaldo Correia de Brito. Porque seu estilo literário, a sua frase, o emprego preciso das palavras têm um sentido de permanência extraordinário. Roniwalter Jatobá: Três, mas infelizmente fora do páreo porque já estão mortos: Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Tibor Moricz: De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra, outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta… Chico Buarque. Esse não é o país da piada pronta? Tony Monti: Se o critério para merecer o Nobel for uma obra vultosa e significativa, acho que o Ferreira Gullar poderia ser um candidato. Walther Moreira Santos: Se ainda estivesse vivo, Moacyr Scliar merecia figurar na lista de 2011, pelo caráter universal dos seus contos absolutamente impecáveis. Whisner Fraga: Paulo Coelho, por ser o escritor brasileiro de maior sucesso no exterior, o que mais vendeu e aquele cuja obra mais divide opiniões.

LUIZ BRAS, que colabora no Rascunho, escreveu Babel hotel e mora em São Paulo.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

LEITURAS, 14: O INVASOR

“Um homem diante de um deserto pode, ao menos, caminhar em qualquer direção.” Esta é, talvez, a chave para decifrar a metáfora da novela O invasor, de Marçal Aquino, recém-publicada em formato “quase de bolso” pela Companhia das Letras, na coleção Má Companhia.

Alguns leitores podem argumentar que não há nada naquela história para ser decifrado. Mas há sim, pois a narrativa é em primeira pessoa. É um testemunho pessoal do personagem: é ele quem escreve tudo o que viveu, porque está vivo, ou esteve por um tempo, o suficiente para escrever sua história, em algum lugar. Não hesito em afirmar que, no deserto do seu drama, ele tomou outra direção, se corrompeu de todo, pois todo homem tem seu preço, que se mede ou em dinheiro ou em oportunidades. Neste sentido, no desfecho, foi oferecida a Ivan uma nova chance, e ele a agarrou, destituído de seu último fiapo de moral: quem suja as mãos uma vez suja duas.

O argumento de O invasor, que constituiu a base do filme homônimo de Beto Brant, uma das melhores produções brasileiras do final dos anos 1990, põe em pauta a afirmação — terrível — de que qualquer problema no Brasil pode, com proveito, ser resolvido a bala. O diálogo entre as partes faz perder tempo e dinheiro, e não passa de um vício socrático. Se alguém não concorda com você ou o está atrapalhando, elimine-o. Com isso, você ganhará tempo e economizará dinheiro, pois um matador de terceira categoria faz o serviço por qualquer trocado — e vida que segue. É assim entre parentes, entre vizinhos, políticos, sócios. Os jornais, a tevê e a internet estão cheios de histórias parecidas, cunhadas com base nesta fórmula.

E não foi de outro modo que Alaor (Giba, no filme) e Ivan decidiram resolver suas diferenças com Estêvão, sócio de ambos na construtora Araújo & Associados. Pagaram a Anísio para resolver seu problema, matando Estêvão. Só não contavam com o fato de que Anísio, depois, também se tornaria um problema, ao invadir suas vidas. E agora, quem vai matar quem? Retrato de nossa época, e não apenas no Brasil, O invasor é, além de uma ágil narrativa policial, um ótimo exame de quem somos nas situações extremas do cotidiano. Alguns (talvez a maioria) ainda preferem o diálogo, o acerto de contas verbal, mas há quem prefira encomendar um corpo, como se telefonasse e pedisse uma pizza.