"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

LANGSTON HUGHES


CRUZAMENTO

O meu velho era um branco
E minha velha era preta.
Se eu maldisse o velho branco
Em praga igual eu me meta,

Se quis que a velha estivesse
No inferno ou mais além,
Me arrependo e quero agora
Que esteja passando bem.

Meu pai morreu num belo casarão
Minha mãe morreu num gueto.
Onde será que vou morrer,
Não sendo branco nem preto.

(Trad. de Jorge Wanderley)

O NEGRO

Eu sou um negro:
Escuro como a noite é escura,
Escuro como o ventre de minha África.

Eu fui um escravo:
César mandou-me limpar a soleira de suas portas.
Lustrei as botas de Washington.

Eu fui um operário:
Sob minhas mãos as Pirâmides cresceram.
Eu fiz a argamassa para o edifício Woolworth.

Eu fui um cantor:
Por todos os caminhos da África até a Geórgia
trouxe minhas canções tristes
e criei o ragtime.

Eu fui uma vítima:
Os belgas cortaram minhas mãos no Congo.
Lincham-me agora no Texas.

Eu sou um negro:
Escuro como a noite é escura.
Escuro como o ventre de minha África.

(Trad. de Domingos Carvalho da Silva)

EU TAMBÉM CANTO A AMÉRICA

Eu também canto a América.

Eu sou o irmão de cor.
Quando chegam convidados
Eles me mandam comer na cozinha,
Mas eu gozo,
Me alimento,
E fico forte.

Amanhã,
Me sentarei à mesa
Quando houver visita.
Ninguém terá coragem
De me dizer
“Vá comer na cozinha”
Então.

Além disso,
Verão como eu sou bonito
E ficarão envergonhados ―

Eu também sou América.

(Trad. de Orígenes Lessa e Oswaldino Marques, atualizada por Mayrant Gallo)


LANGSTON HUGHES (1902-1967). Talvez o mais célebre poeta negro dos EUA. Em favor do seu povo e contra o preconceito, ele disse um dia, com sua voz pungente e branda: “Eu também sou América”. E foi com esta voz “aparentemente baixa” e irônica, meio cool, que ele rompeu barreiras e galgou degraus. Também foi contista e dramaturgo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU & RICARDO: DETETIVES

6. O FALSÁRIO

Culto o bastante para se exibir sem se fazer notar, mas insensato ao ponto de prescindir de alimentar relações que sabia consistentes e desinteressadas, mergulhava em livros e filmes por um motivo bem simples e nada sutil: para se afastar das pessoas.
Por traição, ressentimento ou despeito, esperava ser posto para fora de suas vidas, mais dia menos dia. E era por isso, aliás, que sempre perpetrava uma citação de efeito, a cada fala de sua autoria ou alheia: para despertar em volta, a um só tempo, ódio e inveja.
Assim, não era raro que, por este ou aquele motivo, fosse o centro das atenções, mesmo em ausência. Também o vetor das críticas, que ele próprio fazia questão de provocar, e o sangue da chacota, a correr forte e abundante.
As coisas iam assim, até que um dia uma mulher, introduzida não se sabia por quem no grupo de amigos que semanalmente se encontravam num bar do centro, sublevou-o tecnicamente e sem que precisasse lançar mão daquilo que de melhor a natureza a proveu.
Foi o suficiente para que ele agora, diante de Nicolau e Ricardo, chorasse como um menino.

MAYRANT GALLO. Miniconto do livro Nem mesmo os passarinhos tristes (inédito).

Imagem: cena do filme A lua na sarjeta (1983), de Jean-Jacques Beineix.