"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 29 de março de 2009

LESTE EUROPEU, 1

Fotografia de Evgen Bavcar.

AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


TUDO

Tudo –
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais
do que um farrapo do caos.


DAS RECORDAÇÕES

Estávamos à conversa
e de repente calámo-nos.
No terraço apareceu uma rapariga,
ai que bonita,
demasiado bonita
para a nossa estada aqui, tão sossegada.

A Bárbara, alarmada, olhou de relance para o marido.
A Krystyna, instintivamente, pousou sua mão
sobre a do Zbyszek.
E eu pensei ligar e dizer-te:
por enquanto não venhas,
prevêem chuva para os próximos dias.

Somente a Agnieszka, viúva,
saudou a bonita rapariga com um sorriso.


WISLAWA SZYMBORSKA (1923). Poetisa polonesa, Prêmio Nobel de 1996. Traduzidos por Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, os poemas acima integram o volume Instante (Chwila): Lisboa: Relógio D´Água, 2006.

segunda-feira, 23 de março de 2009

CATÁLOGO MAIGRET, 1

AS FÉRIAS DE MAIGRET (Les vacances de Maigret) foi publicado em 1948. O comissário, gozando férias em Sables-d’Olonne com a esposa, vê sua rotina mudar radicalmente quando a Sra. Maigret é hospitalizada às pressas para uma cirurgia. Este evento fortuito altera o cotidiano ocioso de Maigret, que, mesmo desinteressado dos acontecimentos que o enredam e insatisfeito com o rumo de sua diletante investigação, vai solucionar mais um mistério e agarrar mais um criminoso. Neste romance, que é um dos melhores da série, Simenon reflete sobre as conseqüências do ciúme amoroso na vida de um homem, bem como sobre o aprisionamento existencial a que o excesso de beleza pode conduzir uma mulher. Uma das melhores personagens do livro – e em torno da qual toda a trama se constrói – ironicamente não aparece nem para Maigret nem para o leitor. Quando afinal se obtém a chave que dá acesso aos seus aposentos íntimos, o romance termina. Tal característica faz deste relato um dos mais simbólicos e subjetivos já escritos por Simenon.

A BELA ADORMECIDA. "Vendo Maigret parado na soleira, Francis não fechara a porta. E o comissário voltou a entrar na casa, olhando para a pequena chave que tinha entre as mãos, a chave do quarto de cortinas fechadas, onde se ouvia a respiração regular de uma mulher adormecida."

GUARDADOS DA VIDA. "Um cheiro de coisa velha saía da gaveta, à qual viriam juntar-se as recordações de Lucile e o seu atestado de óbito."

MUNDO VORAZ. "Os Duffieux não tinham feito outra coisa, toda a sua vida, senão trabalhar e contar cada centavo. Na casa deles havia uma menina morta, sua filha, e, em vez de os deixarem com a sua dor, ninguém se inibia de lhes fazer as perguntas mais íntimas, enquanto os curiosos encostavam o nariz nas vidraças das janelas e os jornalistas os bombardeavam com flashes."

LÍMPIDO, PRECISO E POÉTICO. "– Nossa reverenda madre não demora... Sempre aquele roçar de saias, aquele entrechocar de rosários, o deslocamento de ar das toucas de asas reviradas."

sexta-feira, 13 de março de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU & RICARDO: DETETIVES

3. COMPACTO E DIFUSO

Quarta-feira de cinzas e, por mais que o Governo e a imprensa disfarcem e escondam, muitos foram os crimes durante o Carnaval. Houve inclusive uma Dália Negra baiana. Uma jovem encontrada nua num terreno baldio, o ventre aberto por um enorme talho que quase a dividiu em duas, como uma fruta – e as bochechas rasgadas, os seios lacerados, os pés comidos por atos de tortura...
Nicolau e Ricardo contemplavam a cena macabra, em meio a jornalistas, curiosos, flashes e câmaras de tevê.
“Num país sério, começaríamos por investigar quem comprou o livro Dália Negra – ou locou o filme – nos últimos três meses...”, comentou Nicolau.
Ricardo nada respondeu. Mas Isaac, o jovem detetive que eles estavam treinando para um dia substituí-los:
“E por que não fazemos isso?”
Nicolau ignorou a pergunta, virou-se e foi se afastando da multidão que cercava o cadáver. Ricardo e Isaac o seguiram.
“A nossa sociedade não é compacta; logo, ninguém se importa que haja crimes assim, e nem mesmo mais bárbaros que este”, acrescentou Nicolau.
Chegaram ao carro e já estavam entrando, quando Isaac perguntou, balançando a cabeça de um para o outro detetive:
“E como é a nossa sociedade?”
Não parecia se divertir, embora o ar jovial, a expressão risonha.
“Difusa”, respondeu Ricardo, antecipando-se a Nicolau.


Para Renata Belmonte, nesta Sexta-Feira 13, seu aniversário. Semana que vem, o quarto episódio da série. Ilustração: capa do livro Mulher no escuro, de Dashiell Hammett, pela L&PM, 2007.

sexta-feira, 6 de março de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU & RICARDO: DETETIVES

2. A CARNE E O CARNAVAL

Nicolau e Ricardo foram escalados para os dois piores dias do Carnaval: domingo e segunda-feira. Incógnitos na multidão, eles observavam. De repente, um bandido, a assediar dois estrangeiros. Levado a uma cilada com mais três facínoras num beco deserto, o casal foi pilhado de seus pertences. Quando a garota estava por ser também pilhada de sua honra, Nicolau e Ricardo resolveram intervir... Porém:
“Non!”, protestou ela.
“No, no!”, consolidou seu companheiro.
Afastando-se com Nicolau, Ricardo disse:
“No passado, eles vinham tomar nosso ouro, agora vêm tomar no...”
Mas, como tivessem retornado ao núcleo do frenesi, a última palavra foi engolida pelo fragor dos corpos...


Semana que vem tem mais. Imagem: cena de A lira do delírio (1978), filme de Walter Lima Jr.

terça-feira, 3 de março de 2009

A SENTENÇA

Sonhou que transava com três mulheres. Mais: que as satisfazia.
Acordou, e nem a esposa estava ao seu lado...


Miniconto de Nem mesmo os passarinhos tristes, inédito.
Quadro: O julgamento de Páris, de Petrus Paulus Rubens (1577-1640).