"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

MORREU J. D. SALINGER

Segundo o New York Times, J. D. Salinger, autor do romance O apanhador no campo de centeio, morreu hoje, em New Hampshire, aos 91 anos. Desde 1965 que o autor vivia recluso, sem publicar nenhuma obra. Embora tivesse confessado ao amigo John Burt que continuava escrevendo, e que guardava num cofre vários livros prontos, a vida do escritor tornou-se um mistério, e ele, um mito da Literatura moderna. No Brasil, seus poucos livros são publicados pela pequena e não menos misteriosa Editora do Autor (O apanhador no campo de centeio, Nove estórias e Franny e Zooey) e pela L&PM (Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação). Menos conhecido que o romance que o tornou célebre, Nove estórias é uma ótima ponte para o estranho universo ficcional do autor.

domingo, 24 de janeiro de 2010

A RESPOSTA PELO TAO

Recentemente, um jornalista de província me envolveu, por incompetência e descuido, numa embrulhada na revista Bravo. Tive que dar explicações e, por mais que desejasse me ausentar do episódio, ele retorna, a me exigir participação. Deixo aqui agora, de forma definitiva, a minha resposta, através de um texto excelente de Henri Borel, extraído do seu maravilhoso livro, sobre o Tao, Wu wei, a sabedoria do não-agir (São Paulo: Attar, 1996), em tradução de Margarita Lamelo Cacuro e Sérgio Rizek:

"O Tao não é bom nem mau, é tão-somente a única Realidade. O Tao é. Todas as coisas irreais têm vida ilusória, feita de contrastes e relatividade. Elas não vivem por si mesmas, são somente engano. Deixa de querer ser bom, e não penses que és mau. Wu wei, não-agindo, é assim que te deves deixar conduzir. Não ser bom nem mau, nem grande nem pequeno, nem alto nem baixo. Tu só serás realmente no dia em que, observa o sentido de minhas palavras, já não fores mais. Livra-te primeiro de todas as ilusões, desejos e aspirações, e então estarás no caminho, sem que precises sabê-lo, sem que precises ser conduzido por uma causa conhecida. Estarás seguindo para o Tao através de um ritmo suave, ou seja, por seu princípio vital puro, o único real. E seguirás assim, de forma tão clara e natural como as nuvens douradas que já se dissolveram no céu".

Pintura: Saquarema (1955), de José Pancetti (1902-1958).

domingo, 17 de janeiro de 2010

O CONTISTA CHRIS OFFUTT

O conto norte-americano, desde Stephen Crane, deixou o típico de lado e tornou-se universal. O. Henry, Jack London, Ernest Hemingway, Dorothy Parker, Sherwood Anderson, William Faulkner, Willa Cather, John Steinbeck, Conrad Aiken, Erskine Caldwell, John O’Hara, Flannery O’Connor, Dashiell Hammett, Carson McCullers, John Cheever, John Fante, James Salter, Paul Bowles, Breece D’J Pancake, Patricia Highsmith, Raymond Carver, Joyce Carol Oates e, mais recentemente, Chris Offutt, com o seu impressionante volume de apenas oito contos Além das montanhas.
Offutt reúne tudo o que se espera de um contista nato: fluência, trama envolvente, movimentação no tempo e no espaço, alternância de narração, descrição e diálogo, uma linguagem ao mesmo tempo funcional e poética, com rasgos filosóficos, representação relevante da vida e do mundo, reflexão e, às vezes, ciframento, desfechos condizentes ou conflitantes com a trama, atmosfera, mistério e ironia. Poucos foram os contistas que li nos dez últimos anos (e dos quais antes jamais ouvira falar) que me deixaram assim tão empolgado. Na verdade, só me lembro de dois: o sergipano Antônio Carlos Viana e a italiana Dacia Maraini, com o livro Meu marido (Berlendis & Vertecchia, 2001).
Dois contos se rivalizam como as obras-primas do livro de Offutt, que também é romancista e escreveu um livro de memórias: Além das montanhas, que dá título ao volume, e Moscou, no Idaho. Em ambos, a trama é só um pretexto para uma imersão maior, sobre a existência. O primeiro narra a história de Gerald, que é encarregado pelos quatro cunhados de ir buscar o outro irmão deles, Ory, que levou um tiro e está hospitalizado numa cidade distante. O segundo enfoca o dia-a-dia de dois ex-presidiários no único emprego que, ao sair da cadeia, encontraram: coveiros. Nos dois contos, e mais fortemente no segundo, prevalecem as reflexões sobre a vida a partir do seu fato mais corriqueiro: a morte. O diálogo entre os dois coveiros chega a um nível tal, que um deles começa a achar que a prisão era melhor, mais digna, o verdadeiro lar, o lugar onde se alcançam as lições definitivas: “A maior coisa que aprendi foi como conseguir que as pessoas me deixassem sozinho. Depois foi como dormir. Antes, nunca dormia bem; hoje, consigo dormir catorze horas seguidas.” E o outro retruca: “Só isso?” Não: “Também tive certeza absoluta de que gosto de mulheres”. Muitos são os trechos a destacar, como este, mais filosófico: “Ocorreu-lhe que o tempo não se move para a frente, como ele sempre pensara. São as pessoas que se movem pelo tempo”. Ou este outro, mais devastador: “Na prisão, descobrira que as leis eram feitas para proteger as pessoas que faziam as leis”.
De uma linhagem de escritores que não pretendem entreter, mas concentrar o leitor, fazê-lo evoluir do embotamento para a consciência, Offutt assim conclui seu relato: “Tilden se perguntou quando encontraria uma mulher, um trabalho de que gostasse, uma cidade onde quisesse ficar. Lá em cima, a Via Láctea fazia uma nevasca de estrelas no céu. Não havia nem uma cerca ou muro à vista”. Exílio existencial, liberdade de ação: destino. Eis a fórmula, da literatura para a vida.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

ERIC ROHMER

Vivemos numa época de insaciável interesse pela vida alheia. Mas, se antes fazíamos isso com o propósito de ter um exemplo elevado a ser seguido, e foi esta avidez que transformou a biografia num gênero literário, agora o objetivo é tão-somente reunir matéria jocosa para alimentar o forno da fofoca.
É óbvio, portanto, que para o nosso tempo o que Cristiano Ronaldo ou Beyoncé comeram no café da manhã é muito mais importante como notícia que a morte de um cineasta francês com mais de oitenta anos e que, além disso, a vida inteira filmou em surdina, sem estardalhaço; e ainda mais se aqueles dois estiveram na mesma cama...
Para o cinema de arte, a perda de Eric Rohmer (1920-2010) não é pequena. Ele foi o sul e o norte de muitos cineastas, e continuava a produzir adeptos. Foi uma fração de sol num campo gelado. Uma trilha a seguir e um estilo a celebrar. Era um dos últimos diretores franceses oriundos daquela genial geração dos anos 1950, e era também o mais discreto e seguramente um dos mais corajosos. Não fez concessões de nenhuma natureza, não adaptou seu estilo às exigências de momento, nem mudou suas escolhas e predileções em favor da celebridade. Encheu-se de palavras para a veneração de poucos e um respeito mútuo, pois não há este crítico que, diante de seus filmes, não apascente sua fera. Pode até não o admirar, mas não o desdenha. Rohmer seguiu como começou e findou-se como no início, esmiuçando a vida.
Costumo dizer aos amigos que o cinema atual, especialmente o de entretenimento, está mais pautado no diálogo que nas imagens, a não ser que o astro do filme seja a máquina de efeitos especiais. Neste caso, a ação ganha vulto e praticamente movimenta todo o filme. Pode parecer paradoxal o que digo, mas Rohmer baseava suas narrativas em três aspectos: o diálogo, a movimentação constante dos personagens e o exame das relações cotidianas mais banais. Nele, contudo, diferentemente dos filmes de massa, o diálogo não é vazio ou funcional, para o esclarecimento da platéia; nem a movimentação um recurso da ação, que mantém o público vidrado; tampouco as relações cotidianas se resumem a seções laboratoriais de tipos, com vistas a promover na sociedade, panfletariamente, convenientes mudanças de comportamento. Em Rohmer, o diálogo é a vida do filme; a movimentação, o que faz a trama avançar no tempo e no espaço; e as relações cotidianas, a matéria que permite o exame minucioso da condição humana. E tudo isso sem nenhuma pretensão, com uma simplicidade quase franciscana.
A experiência de assistir a um filme de Rohmer é alcançar a certeza de que para ser profundo e perene um filme não precisa ser monótono nem intrincado. Rohmer, como Truffaut, conta-nos histórias simples que nos conduzem à iluminação e à compreensão de certos segredos e mistérios, que são tão evidentes quanto o céu sobre nossas cabeças, mas que, por ingenuidade ou ponto de vista obliterado, não os enxergamos.
Um dos maiores exemplos está em Conto de verão: durante a estação de veraneio que passa numa praia, um rapaz se envolve com três garotas. Indeciso, hesitante, pois as três o atraem e cada uma apresenta um predicado que as outras não possuem, ele não sabe a quem escolher e nem imagina que sua decisão partirá da vida, com seu inevitável fluxo, a nos conduzir como a uma folha seca na correnteza. Sua decisão será, portanto, incidental. Rohmer usa o deus ex machina, mas não como um recurso artificial, evidente, que de imediato o espectador percebe. Ele é sutil, porque é simples, e é simples porque é natural, não inventa. Seu refinamento está nisso. Arte destituída do rigor da palavra arte.
Rohmer se foi, mas ficaram seus filmes, exemplos de beleza estética, de narrativa sem pretensão, de profundidade sem monotonia e de uma simplicidade técnica que só os grandes artistas alcançam.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

COINCIDÊNCIA DE VERÃO

Nesta madrugada, acordei e, depois de beber um longo copo d'água, decidi começar a leitura de Última noite e outros contos, do excelente escritor norte-americano James Salter, autor do excepcional Um esporte e um passatempo. Raramente começo a leitura de um volume de contos pelo primeiro conto; prefiro consultar o sumário e escolher a esmo um relato. Não foi o que ocorreu desta vez. Fui direto ao primeiro conto, talvez atraído pelo estranho título: Akhnilo. Impressionista, lírico, misterioso, como boa parte da obra do autor, a história narra os momentos que se seguem a uma noite de verão em que o protagonista acorda com um barulho, que a princípio não consegue identificar. Decidido a averiguar o que estava acontecendo, o personagem desce pelo telhado da casa e vai à procura do som. E é então que sua vida se transforma, ao compreender que ouvira quatro palavras, das quais só uma lhe restava depois de alguns instantes e que, ao voltar, inquirido pela esposa sobre o que acontecera, ele também esqueceu. Com a presença da filha, que despertara com a movimentação dos pais, o relato se soluciona, assim, enigmático: "e para Dena recomeçou uma época que ela lembrava dos primeiros anos de escola, quando a tristeza tomava conta da casa e as portas batiam com força e o pai, cheio de afeição desajeitada, entrava no quarto das filhas para contar histórias de ninar e acabava adormecendo ao pé da cama dela". Cinco minutos depois de ler este conto, enquanto ainda o digeria, em sua beleza e evidente ciframento, ouvi um barulho proveniente da sala e fui averiguar. Não era nada, nem ninguém. Talvez só uma coincidência de verão. Ou, como afirma o narrador de Salter: "Tinha a sensação de ser o único ouvinte de um mar de gritos sem fim".

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O FAROL

Um escritor só é representativo pelo que ele escreve, pela qualidade estética de sua obra, sua capacidade de conferir elevação ao mais baixo dos assuntos. Kafka, quando transforma um homem num inseto a enojar sua família; Camus, quando transforma alguém que não é estrangeiro num sujeito psicologicamente estrangeiro e permite que a sociedade o julgue como tal e o condene; João Antônio quando transforma a visita de um rapaz a um antigo amigo numa compreensão mais profunda da existência, do que somos. Um escritor jamais é representativo por estar mais ou menos visível, transitando pela mídia, viajando de um canto a outro do mundo ou fazendo-se de lobby pelos subterrâneos da Academia. Isso não é literatura; é política literária. Mas se tal escritor cumpre esse papel, mais político, e ainda reúne aquela primeira qualidade, ele também é representativo, ou até mais, se as suas ações aliterárias não se restringem a si mesmo; se elas são como trilhas de orientação para os que o admiram ou o seguem.

Pintura: Lighthouse hill (1927), óleo sobre tela, de Edward Hopper (1882-1967), pintor norte-americano.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A CRUZ E A ESPADA

Dilema: para a Direita (capitalista), a arte deve vender; para a Esquerda (socialista), a arte deve servir. Paradoxo: servindo, a arte se vende; vendendo, a arte serve-se.
Imagem: a fotografia provocativa de Alison Brady.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O ÚLTIMO SUSPIRO

Num livro que estou lendo, Os fantasmas do século XX, do norte-americano Joe Hill, revelação da narrativa fantástica do seu país, há um conto que narra a história de um colecionador de últimos suspiros, entre os quais estão os de Edgar Allan Poe e Roadl Dahl, mestres do fantástico. Ele possui um museu onde os expõe ao público e, durante a visita de uma família interessada e também assustada, tem sua coleção questionada, em especial quanto ao fato de que só coleciona últimos suspiros de celebridades: "Todos os suspiros que o senhor tem aqui são de pessoas famosas?" O Dr. Alinger retruca e o faz com uma fala memorável: "De forma alguma. Eu já engarrafei últimos suspiros de universitários, funcionários públicos, críticos literários... uma profusão de gente sem importância". Algumas pessoas podem argumentar que o personagem, e talvez por extensão o autor, está desprezando aqueles tipos. Não é desprezo; é ironia. Há centenas, milhares e até milhões de funcionários públicos e universitários; até que algum se destaque por esse ou aquele motivo, todos são apenas "mais um na multidão", um punhado de gente numa sala ou num campus. Tal evidência apenas apoia a ideia de que também há críticos literários aos montes; que todo leitor é, a rigor, um crítico literário; e ainda mais hoje, que julga-se a arte pelo gosto pessoal ou pela escolha estética que se fez. Raramente pelo mérito da obra, pelos sentimentos que ela desperta, pelo abalo que ela estabelece no leitor, promovendo em sua capacidade de se emocionar e em sua inteligência outras convicções e uma percepção nova das coisas deste mundo e do que está acima dele: as estrelas ou este outro "céu", escuso e ainda mais misterioso, que é a mente humana. O Dr. Alinger parece dizer: "Há críticos literários? Para quê?" Eu diria que para ofender, para desdenhar, para destilar sua acidez e o seu desprezo. Para julgar o objeto artístico sempre em comparação com outro, jamais como um objeto em si, reunião de memória estética, experiência humana, aprendizado cultural e escolhas pessoais. Recentemente um "suposto crítico literário", fadado por vários motivos a ser um verme agonizante a jorrar seu suco infecto sobre textos alheios, ao comentar a criação de um poeta, acusou-o de não oferecer ao poema um desfecho condizente com o seu início, de fato, segundo ele, elevado e artístico. Ora, um poema não tem desfecho (salvo se for um poema narrativo), mas sim arremate; não são, como podem parecer, termos sinônimos. Desfechar é "tirar o fecho ou o selo", "abrir", "desvendar". Arrematar é quase uma ação inversa, ao menos na poesia, pois compreende um processo que envolve a um só tempo "conclusão" e "nó". E, além do mais, um poema se arremata com o que lhe cabe: de rítmico, de incidental (as palavras se combinando por si mesmas) e, obviamente, de técnico, o engenho poético, a formação propriamente dita do poeta. O poema é e será sempre uma linguagem que nasce e não permanece. Uma linguagem que jamais se repete. Uma linguagem que é, ao mesmo tempo, memória do sujeito, do idioma e da espécie. Uma linguagem de momento, única e irrepetível. Posta aqui, não pode ser trasladada para lá, pois não é um corpo; é um fluido, uma estação de passagem, um sopro quase divino, o último suspiro. Uma linguagem que, em última análise, não pode ser reutilizada. Reduzi-la a um simples meio funcional de temas e conteúdos é devolvê-la ao substrato comum da língua, de uso cotidiano, que somente quer comunicar uma mensagem e se fazer entender, e por isso seus usos se perdem na vastidão dos tempos. O poema é o ciframento possível de um estado de espírito, de um instante de iluminação. Se o leitor e o eu do poeta, durante a leitura, encontram-se ou "coincidem" nesse instante, o poema se justificou. Se não, que o leitor respeitavelmente passe a página. Entende-se por que Joe Hill, em seu conto, desfere uma ironia sutil contra os críticos literários: do alto do seu ponto de vista eles olham o mundo, e o que veem é a sua verdade, a sua própria face, distorcida, que lutam então por reparar.

Imagem: Einar Turkowski, do livro Estava escuro e estranhamente calmo (CosacNaify, 2009).

domingo, 3 de janeiro de 2010

OS HÚNGAROS

Prezada Bípede, obrigado pelos recentes comentários aqui no Não leia! Um feliz 2010 para você e para toda a família Bípede! Sobre os escritores húngaros, um excelente livro é: Antologia do conto húngaro (4a. edição pela Topbooks, 1998), organizada pelo húngaro-brasileiro Paulo Rónai e com uma extensa e arguta introdução assinada por Guimarães Rosa. Estão todos ali: Márai, Ady, Molnár, Krudy, Szép, Gelléri, Kostolányi e muitos outros. Há uma segunda antologia publicada pela EDUSP, em 1991, também organizada por Rónai e também maravilhosa: Contos húngaros. Novamente, Kostolányi, Molnár, Szép, Gelléri, Déry, entre outros. Procure ainda o volume com duas novelas de István Örkény, que nos deixam perplexos com sua atualidade: A exposição das rosas (Editora 34, 1993). Niki: a história de um cão, de Tibor Déry, saiu pela Veredas (2002) e faz uma poderosa crítica ao Comunismo. O companheiro de viagem, de Gyula Krudy, veio a público pela CosacNaify, em 2003. Roteiro do conto húngaro, organizado por Rónai, e claramente a base do volume Antologia do conto húngaro, é hoje uma raridade editorial, pois foi publicado em 1954, na coleção Os cadernos de Cultura, do MEC, e jamais reeditado. Nesta obra, além dos contos, temos fotos de três ou quatro escritores, alguns dos mais célebres talvez. Há ainda: O tradutor cleptomaníaco, de Dezsö Kosztolányi, pela Editora 34, de 1996, que reúne alguns contos que o autor escreveu com seu alterego Kornél Esti; um livro realmente espetacular, de contos simples e profundos; já Os meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár, recém-lançado pela CosacNaify, foi durante décadas um livro marcante para a formação do jovem brasileiro. Hoje, está meio esquecido. Também de Molnár, temos O poste a vapor (CosacNaify, 2005), uma novela que é uma verdadeira joia literária. Por fim, A tragédia do homem, de Imre Madách, peça mundialmente conhecida, foi traduzida por Paulo Rónai e publicada em 1980 pela Salamandra em coedição com a UERJ. No campo da teoria, da história e crítica literárias, há poucas publicações respeitáveis, mas podemos citar: À sombra do quarto crescente, de Aleksandar Jovanovic, um passeio pelos temas literários e culturais dos países do Leste Europeu, entre os quais a Hungria, e, do próprio Paulo Rónai, Pois é: ensaios (Nova Fronteira, 1990) e Como aprendi português e outras aventuras (Artenova, 1975). Em ambos há vários ensaios sobre autores húngaros e aspectos de sua literatura e cultura. O último lançamento de autor húngaro no Brasil de que tive notícia (não sou muito de ler jornais e revistas, prefiro vagar nas livrarias e achar por mim mesmo os "melhores" autores e livros), além, é claro, das obras de Imre Kertész e Sandor Márai, regularmante publicadas por aqui há anos, foi O viajante e o mundo da lua (Ediouro, 2007), de Antal Szerb. Bem, era isso. Não é certamente tudo, mas é um caminho para esse pequeno país de grandes escritores que é a Hungria.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

OS GOLFINHOS SÃO MAIS GENTIS

Em Beleza e tristeza, de Yasunari Kawabata (1899-1972), há uma cena que sintetiza muito bem a arte do autor, que é ao mesmo tempo sutil, simples, simbólica e refinada. Oki, escritor de 55 anos, passeia com a jovem Keiko, pupila de uma ex-namorada que ele reencontrou em Kyoto. Ele compra pedaços de peixe e de polvo, e vão os dois alimentar os golfinhos. Estes pulavam e arrebatavam das mãos de Keiko as iscas. Em meio à diversão, começa a chover, e eles tomam um táxi. Oki diz então:

"Alguns cardumes de golfinhos às vezes passam por aqui, do outro lado da baía, um pouco além de Ito. Parece que eles são pescados perto da praia; os homens tiram as roupas, entram na água e os capturam com as próprias mãos. Os golfinhos não resistem quando se fazem cócegas debaixo de suas barbatanas."
"Coitados..."
"Eu me pergunto se uma moça bonita resistiria."
"Que ideia repugnante! Pois bem, imagino que ela iria lufar, unhar e arranhar!"
"Provavelmente os golfinhos são mais gentis..."

Aí está, sem explicações, nem conclusões. Para o deleite e o proveito do leitor atento e competente.
Prêmio Nobel de Literatura de 1968, Yasunari Kawabata é seguramente um mestre da literatura japonesa do século XX. Atribui-se a ele, inclusive, a modernização da prosa de seu país, com a publicação de A dançarina de Izu, em 1926. Autor de vários romances e contos, sua obra está sendo pouco a pouco editada no Brasil pela editora paulista Estação Liberdade, que já publicou: A dançarina de Izu, Kyoto, O país das neves, Contos da palma da mão, A casa das belas-adormecidas (que inspirou Gabriel García Márquez a escrever Memória de minhas putas tristes) e Mil tsurus. Kawabata se matou em 1972. A tradução do excerto acima é de Alberto Alexandre Martins, da edição da Globo, de 1988.