"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

VÁ E VEJA, 4

Em exibição nos cinemas, Horas de verão (L'heure d'été, França, 2008), de Olivier Assayas, bela e profunda reflexão sobre a dissolução das artes, da família, das tradições e das relações pessoais, que, pressionadas pelo mau-gosto do nosso tempo, cedem lugar às trivialidades e à valorização de uma existência pautada em critérios monetários e de êxito pessoal, no trabalho. Neste sentido, o filme promove um diálogo aberto com Assédio, de Bernardo Bertolucci, no qual um pianista, durante seu concerto para uma platéia seleta, vê sua música substituída por uma bola de futebol e o alvoroço que esta promove na sociedade. O auge de Horas de verão — e não por acaso sua cena final — se dá quando uma mocinha e seu namorado de momento pulam o muro e fogem da propriedade que pertenceu à avó da garota, reduto de pintores, bom-gosto artístico e acervo cultural, mas agora vazia, sem existência nem sentido, embora repleta de música, juventude, bebida e, obviamente, drogas. (As vontades mudam conforme o tempo, e os tempos, conforme as vontades.) Mas para onde vão aqueles dois? Que lugar procuram? Nenhum. Num mundo de padronizações e repetições, onde todos os países e todas as culturas se inspiram num único modelo, todos os lugares são o mesmo lugar. Franco, duro, lacônico e metafórico, Horas de verão só não é melhor porque não foi dirigido pelo mestre Eric Rohmer, que certamente o apreciou — se ainda está vivo e o assistiu.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

UM DIA PARA LEMBRAR

Neste exato momento, na sala, tocam, meio desafinadamente, o Hino Nacional Brasileiro. É jogo do Brasil, e os baianos gritam, vibram, aplaudem. O Brasil para os brasileiros é isso: 11 camisas amarelas em campo atrás de uma bola. Compreensível. Estão se preparando, ensaiando corpo e garganta para a presepada do ano que vem, na Copa do Mundo: a luta pelo hexacampeonato.

Quem me conhece sabe que não vou ver o jogo. Há muitos anos que não torço para a Seleção Brasileira de Futebol, que a Globo assumiu e controla, que os empresários controlam e que os jornalistas fingem não controlar...

Mas não é disso que eu quero falar. Isso é muito pouco diante do que aconteceu na cidade nas últimas 48 horas e sobretudo hoje, antes deste jogo. Mas todos acham que tudo está bem: o Brasil está jogando, em 2014 a Copa será aqui, e Salvador é uma das cidades-sedes, também teremos corrida de carro todos os anos (isso é sinal de algum avanço), o Carnaval é o mesmo ópio de sempre, somos um dos últimos estados em Educação do País, e também um dos últimos em número de livros lidos por ano. Desculpem, estou exagerando: lemos mais de um livro ao ano, embora menos de dois.

Mas o que aconteceu hoje, eu ainda não disse... É porque é difícil. Mas vamos lá, em outros lugares isso já é comum, e aqui também será, é só questão de tempo: a violência e a ignorância não escolhem geografia nem clima. Estão, ao mesmo tempo presentes e ausentes, em todos os lugares.

O que houve foi que, à tarde, na Estação da Lapa, um rapaz de 18 anos foi morto a tiros, não se sabe por quem nem por quê, numa cena bem cinematográfica, iluminada, limpa, em cenário coletivo (uma estação de ônibus) e em plena jornada de trabalho...

Não muito longe dali, na Av. Vasco da Gama, mais um ônibus era incendiado por traficantes de drogas, em protesto contra a ida de seu chefinho, sem o qual eles não podem viver, para um presídio de segurança máxima no Mato Grosso: agora prisão virou sala de controle do tráfico, só falta instalar tevê, ar condicionado, cozinha, quarto com suíte e piscina...

E eu, um pouco mais tarde, numa livraria, era chamado por um desconhecido (durante a conversa particular que eu travava com um amigo sobre o desempenho dos times no Campeonato Nacional), de racista, sim, racista, simplesmente porque torço para o Fluminense Football Club, do RJ, cujos jogadores, negros, nos primórdios do futebol, tingiam a pele com pó-de-arroz para ficarem brancos e fugirem aos insultos da torcida. Por isso eu sou racista. Só por isso. Eu, que nasci em 1962, no auge da Era Pelé. Mas foi o que ele disse: "Todos os tricolores são racistas! Todos!"

Ao fim, voltando para casa, me perguntei o que aquele sujeito estava fazendo numa livraria. Ora, os livros podem oferecer muitas coisas (informação, conhecimento) e promover outras (destreza de pensamento, desenvoltura da fala e uma certa melhora no nível do raciocínio), menos capacidade de compreensão, inteligência e sensibilidade. E é só por isso que não culpo pela alcunha que me deram, que creio imerecida, a péssima Educação Formal oferecida ao povo deste Estado, nem o fato de que lemos tanto quanto visitamos as estrelas. Os livros, e consequentemente a Educação, só podem até o limite do homem. E os limites, como os indivíduos, são muitos e vários.

Ops! Ia esquecendo. Vai tudo muito bem: o Brasil está ganhando. Até quando?

sábado, 5 de setembro de 2009

HISTÓRIA DE AMOR

O ovo de ouro, de Tim Krabbé, é um dos mais impressionantes e perfeitos romances policiais já escritos, e ainda mais porque vem de uma literatura pouca afeita ao gênero: a literatura holandesa. O argumento é simples: Rex e Saskia, de férias, estão na estrada. O destino do casal, uma casinha numa colina acima do Mediterrâneo. Dias livres, sol, só eles dois, paz, aconchego, initimidade. Quando param num posto de gasolina, Saskia desaparece. Nós, leitores, sabemos que ela foi sequestrada pelo terceiro personagem da história, um professor, mas Rex não. Daí por diante, por meses e anos a fio, através de campanhas na tevê e nos jornais, ele busca saber o paradeiro da namorada. Apela ao criminoso, roga que ele apareça, ao menos para lhe revelar o que aconteceu com Saskia. Até que um dia o criminoso o procura... O resto da trama, o seu desfecho propriamente dito, se revelado aqui, embora não chegasse a tirar o brilho e a força desta história, poderia fazer alguns leitores perder o interesse pela leitura. O certo é que ninguém jamais sairá ileso deste livro, que foi filmado na Holanda em 1991, ganhando vários prêmios internacionais, e depois, em 1993, nos EUA, com o final alterado, o que acabou por diluir o efeito aterrorizante, e metafórico, da história original. Nas duas versões, o título no Brasil foi O silêncio do lago. Um livro que jamais será esquecido por ninguém, mesmo porque conta, através de um sequestro, uma dolorosa história de amor, e as histórias de amor são inesquecíveis. O autor, Tim Krabbé, é jornalista, escritor e jogador de xadrez.