"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 14: ROCCO E SEUS IRMÃOS

A estrutura desta obra-prima de Luchino Visconti é a romanesca, ao passo que a maioria dos filmes elege como veículo de realização a forma clássica do conto, que, grosso modo, pode ser resumida assim: 1)prólogo, 2) problema ou conflito, 3) desenvolvimento, 4) auge, 5) desfecho, e 6) epílogo. Quando a forma é a romanesca, tudo se transforma noutra coisa, pois o romance é o gênero de todas as possibilidades. É o gênero informe, destituído de um fluxo ideal e que flerta com outros registros de escrita: a narrativa histórica, o ensaio, o discurso acadêmico, o relato memorialístico, o panfleto político, o texto jornalístico e de publicidade, a redação epistolar, o diário íntimo etc. O romance, inclusive, é o gênero da liberdade no tempo e no espaço. Exemplos: O som e a fúria, de Faulkner, A lei, de Roger Vailland, Dom Carmurro, de Machado de Assis, A colmeia, de Camilo José Cela, Um amor, de Dino Buzzati. Pode ter, e quase sempre tem, vários personagens ou um só, mas o que não pode faltar é a liberdade de criação e expressão.

E é nisso que Rocco e seus irmãos se apoiou. Não é à toa que vários escritores assinam o roteiro. E também não é à toa que o filme se divide em cinco capítulos, cada qual enfocando um dos cinco irmãos, embora o personagem central seja Rocco (interpretado pelo jovem Alain Delon), o mais humano e o mais verdadeiro do grupo, consequentemente o mais romanesco e heróico, de acordo com a fórmula primordial do gênero, que reza que ele vai sofrer de tudo um pouco e, ao fim, se redimir.

Visconti não poupa meios de expressão e faz um filme com humor, dor, amor, ação, drama familiar, luta de boxe, trabalho inútil e fatigante, crime e algum heroísmo, ainda que em silêncio ou tom menor. Um folhetim, por excelência, mas com arte, beleza estética, reflexão sobre o nosso tempo e a condição humana, e cenas maravilhosas que influenciaram cineastas no mundo inteiro (Wong Kar Wai, por exemplo), como a sequência sem falas em que Rocco se encontra com Nadia (Annie Giradot), tomam o bonde e, abraçados, num oásis de ternura e paixão, veem a cidade circular à sua volta, ao mesmo tempo com um olhar de aprovação e outro de ameaça àquele idílio privado de culpa.

Se você quer assistir a um monumental clássico do cinema mundial, de três horas de duração e ao longo do qual todos os nossos sentidos são espicaçados (pois chegamos a sentir o cheiro de lama e podridão humana na cena de estupro, e a provar o sal da pele de Nadia durante a cena de intimidade com Simone, processo sinestésico que somente o rigor pelo detalhe, marca de Visconti, torna possível), Rocco e seus irmãos é a melhor e, talvez, a única opção. Uma aula exemplar de "romance cinematográfico".

4 comentários:

Bípede Falante disse...

Aqui na loucadora da praia, como diz o meu pequeno bípede, certamente, não vai ter esse filme, mas, quando eu voltar para Porto Alegre, vai ter e, aí, hei de vê-lo.
beijos :)

Lidi disse...

Hoje mesmo vou procurar este filme. Com uma resenha dessa, não tem como não ter vontade de assisti-lo. E ainda mais com o talentoso (lindo) Alain Delon. ;) Abraço, Mayrant.

Anônimo disse...

Gostei muito da postagem. Sou perpetuamente fascinado pelo longa de Visconti, revejo-o sempre. A frase "o romance, inclusive, é o gênero da liberdade no tempo e no espaço" me servirá muito no futuro. Aquele abraço.

Lidi disse...

Assisti, Mayrant. Excelente. Um romance cinematográfico, mesmo. Adorei os cinco capítulos, principalmente o de Simone e o de Rocco. E Delon, lindo como sempre. A fotografia do filme também é linda. Sendo uma indicação tua, já esperava um filme desta qualidade. Abraço.