"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 14 de dezembro de 2008

FAZ SOL LÁ FORA

Não é raro que eu me decepcione com uma obra literária que foi para outra pessoa tão importante quanto o próprio dia do seu nascimento.
É assim, e não pode ser diferente.
Gostar de um romance ou de um poema requer uma história. E uma história compreende experiências pessoais, dias de chuva ou de sol, instantes ganhos ou perdidos, pessoas que amamos e que nos amaram ou que deixamos de amar, sentimentos perdidos ou jamais encontrados, desejos, desfeitas, medos, verdades incorporadas, outras renegadas, proibições terríveis e um punhado de fracassos que ao mesmo tempo detenham nossa presunção e alimentem nossos sonhos.
O que somos é que lê. O leitor é uma entidade, uma alma. Um fluido. Sabemos que está ali, dentro de nós, mas o controle que exercemos sobre ele é mínimo ou meramente funcional. É como água num copo: podemos bebê-la, derramá-la ou simplesmente deixá-la em estado de repouso. Nos três casos, porém, é a água que se faz, ou dentro de nós por canais orgânicos que a reclamam ou como matéria abandonada ao fluxo do espaço e do tempo.
Pois o leitor é um ser que se abandona. Uma substância que se deixa vagar.
Quanto mais tentamos controlá-lo, mais ele se desinspira. Se dilui, se tolda, se embota.
O leitor deve ir como as nuvens, ao sabor das aragens e do acaso, movimentos capazes de desenhar o impossível.
Leia um poema com a prevenção de chorar, e as lágrimas hão de se fundir em pedras a pesar em suas pálpebras. Leia com a intenção de se renovar como pessoa para si mesmo ou para o mundo, e isso não passará do que é, uma pretensão.
Certa vez, parei numa livraria com o objetivo de comprar um presente para minha esposa: um livro de arte. A suma de qualquer um dos pintores modernos que ela admira. E foi então que abri um livro de Paul Klee. Lá estavam várias de suas pinturas mais famosas, reproduzidas por todo o mundo. Uma, no entanto, e que eu jamais tinha visto, deteve-se diante de mim por efeito aleatório de minhas mãos, que passavam distraidamente as páginas: Flotilha, de 1925. Oito navios como que desenhados pela mão inábil de uma criança, um atrás do outro, a soltar fumaça, impávidos, num mar verde-azul sob um céu também verde-azul, borrados apressadamente ao que parece com lápis-cera. E foi então que meus olhos se umedeceram, e uma ou outra lágrima escorreu. Por que isso? Não sei e provavelmente ninguém sabe. Eu olhava aquela pintura quase ingênua, e algo se movia dentro de mim. Nascia.
Não basta ler as palavras ou decifrá-las, compreender as frases. É preciso senti-las nascer para a percepção do que somos, o toque especial deste fluido escondido que só se revela num contexto de absoluta liberdade e desprovido de prevenções e expectativas. Em arte é assim ou não é. Leitores competentes todos somos, mas sensíveis, só alguns. Aqueles que se deixam livres para incorporar. Para se descobrir num poema ou num conto, num romance ou num filme, numa peça teatral ou num quadro. Mas, se isso não ocorrer, tudo bem. A decepção também é uma leitura. É um erro transformá-la numa reação de superioridade e rancor: não cabe no centro da crítica, qualquer que seja ela, o ressentimento por um desejo não satisfeito. Nem tampouco se deve reduzir tal decepção à evidência de uma incapacidade: o leitor é e sempre será inocente. Sua condição de veículo o isenta de culpa. Ou ele recebe o impulso ou o ignora.
Nascida com o propósito de fazer o sujeito sentir impactos e preencher em si vazios tipicamente humanos, da própria espécie, a obra de arte o faz muitas vezes em ausência: não impactando, não preenchendo.
Este paradoxo é apenas uma conseqüência do que somos. E dos meios como a arte se expressa, na forma que é a própria extensão de si numa pessoa ou, em outra, excesso, dèja vu, limite transposto, experiência superada. E também não é culpa do artista se nos decepcionamos. “Estilo é a marca registrada de um temperamento cunhada em material disponível”, escreveu André Maurois. Era do que o artista dispunha e que, infelizmente, ficou aquém daquilo que nossa fluidez exigia, reclamava. Não houve soma, faltou catalisador. Passemos ao próximo livro ou ao próximo artista.
Após qualquer leitura, satisfatória ou insatisfatória, lembremo-nos de André Gide e sua preciosa recomendação:
“Quando acabar de me ler, largue este livro e saia. Eu queria que ele tivesse despertado em você o desejo de sair – sair não importa de onde, de sua cidade, de sua família, de seu quarto, de seu pensamento.”
Faz sol lá fora...


Pintura: Composição abstrata de casas, Paul Klee.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Mayrant! Sou amiga de sua irmã Indaiá e já li vários textos seus - adorei! Hoje finalmene achei seu blog e já virei fã! Você é muito intenso em tudo o que escreve! Um abraço e até a próxima!

Anônimo disse...

Sol, chuva, não importa. Sinto-me agora impelido em escalar o everest. Aquele abraço. T. P.S: Minha primeira (e última condição) será sempre esta: leitor.