"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A VIDA EXÍGUA DE MACABÉA

Personagem de A hora da estrela, de Clarice Lispector (1925-1977), romance publicado em 1977, Macabéa é uma jovem nordestina com um sentimento de perdição no rosto. De corpo escasso, opaco, virgem, inócuo e sem enfeites, anda leve para não ser esvoaçada. Moradora de um quarto sórdido na rua do Acre, com mais quatro companheiras em iguais condições e facilmente substituíveis e que trabalham todos os dias até a estafa.
Aos dezenove anos, numa cidade toda feita contra ela, o Rio de Janeiro, tem um emprego banal de datilógrafa. Ignorante, com somente o terceiro ano primário, copia letra por letra para não errar, mas freqüentemente escreve “desiguinar” em lugar de “designar”. Tola, solitária e teleguiada por si mesma, ri para as pessoas nas ruas, sem obter qualquer resposta. Mas não se importa, não passa mesmo de café frio, por que olhariam para ela? Não passa de capim, sem floração. Tem o hábito de grudar nas pessoas, como melaço ou lama. Jamais se viu nua, de vergonha de si mesma, por ser feia ou sem importância. Habita um limbo pessoal, todo seu, sem pior nem melhor, apenas respirando: um viver exíguo.
Nas noites de frio dá a volta em si própria, fatigada, a boca aberta, nariz entupido, um rosto jovem e já com ferrugem. De dia, usa saia e blusa, de noite dorme de combinação. Desperta, é doce e obediente, com seus olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos; olhar de asa ferida: “sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola”, define-se. Quando foi demitida por cometer muitos erros de ortografia e sujar o papel, teve a cerimônia de dizer: “Me desculpe o aborrecimento”. Então causou pena e admiração ao chefe e foi poupada... Não evoca nenhum Deus, para não receber um não na cara! Vê a existência como uma coisa que é assim porque é assim: sua melhor resposta. Só quer viver, sem motivo nem indagação. Na verdade, ela é o que é, assim como um cachorro é um cachorro, sem o saber: “já que sou, o jeito é ser”, justifica-se. Raquítica do sertão de Alagoas, sem vocação, sonhos, estudo nem sensualidade, sua única paixão é: goiabada com queijo.

Alimenta o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca, e uma saudade do que poderia ter sido e não foi. Só se tornará brilhante, uma estrela, na hora da morte: seu único momento de glória. Sabe que basta apertar um botão para a vida acender, mas que botão? Prefere então não gastá-la, vivendo de menos, poupando-a. No cais do porto, aos domingos (dia em que acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada), ao ouvir o apito prolongado de um navio, sente o coração apertar sem motivo. Como o cantar do galo na aurora de sangue, isso confere um sentido de frescor à sua vida murcha. O cúmulo de sua condição ocorre quando antes de dormir sente fome. Pensa então numa coxa de vaca, mas o que come de fato é papel picado, bem mastigadinho. Noutras noites, se contenta em rolar garganta abaixo um gole de café frio. Seu único luxo é ir uma vez por semana ao cinema. E seu único canal de conhecimento, a Rádio Relógio, simulacro para ela de nossa repetitiva tevê diária: “você sabia que Carlos Magno na sua terra era chamado Carolus?”
Assim é Macabéa. A criação máxima de Clarice Lispector, que, como nenhum outro autor até então, pintou sem piedade (mas com ternura) o ser nordestino de condição irremediavelmente nordestina que chega aos grandes centros urbanos do Sudeste para ganhar a vida e não consegue senão perdê-la, pouco a pouco ou de um sopro, brilhando por um instante no derradeiro momento da morte.
A matriz ou inspiração de Macabéa talvez seja La dentellière, de Pascal Lainé, que Clarice traduziu para a Imago em 1975, com o título A rendeira. Talvez nessa obscura novelinha francesa ela tenha fundado as bases de sua criação, o que não deixa de ser um paradoxo curioso: para ver de perto seu povo e cunhar sua personagem, fora preciso contemplá-los de longe, mediante outro filtro, outra atmosfera, outro idioma. A similar francesa de Macabéa não é muito diferente desta e está no mundo como que soprada, um cisco, um incômodo. E tem igualmente seu destino decretado por um carro, símbolo de uma modernidade que invalida a ambas. Dois mundos, dois destinos, uma só condição: continuar a viver, apesar da vida e dos homens. Cumprir a “grandeza de cada um”.


Perfil originalmente publicado na revista Entrelivros, #20.
Foto: cartaz de A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral.

4 comentários:

Emmanuel Mirdad disse...

Obrigado, Mayrant! Que resenha excelente! Tão rara nesses dias de excessivos elogios interesseiros.

"Nas noites de frio dá a volta em si própria, fatigada, a boca aberta, nariz entupido, um rosto jovem e já com ferrugem".

Lidi disse...

Pesquisei, ano passado, sobre A Hora da Estrela, na Iniciação Científica da UEFS. Macabéia é, sem dúvida, uma personagem ímpar! Adorei a resenha!

colorado disse...

Bárbaro, bravo, bravíssimo. tão bom quanto a autora da obra. vou acompanhar.

Felicidade Clandestina disse...

Não tem como esquecer de Macabéia - personagem marcante de Lispector.

Abraços