"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 14 de fevereiro de 2009

SEVERINO, NARRADOR DA MORTE E DA VIDA

Personagem secundário de Morte e vida Severina, auto de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), publicado em1956. Severino é apenas uma espécie de corpo condutor da narrativa, que constitui um conto natalino; o retirante tentado pela morte e que, por fim, cumprida a sua educação macabra, decide permanecer vivo.
Na verdade, as personagens principais deste poema dramático são a morte e a vida: aquela tentando se sobrepor a esta pela insistência, pela freqüência que institui uma regra (“é sempre nosso serviço/ crescendo mais cada dia;/ morre gente que nem vivia”), e a segunda anulando aquela com um único nascimento, de um menino, similar ribeirinho de Jesus Cristo, capaz de trazer alento e esperança ao mundo sombrio que o rodeia e que, doravante, será a sua casa: “Belo como a última onda/ que o fim do mar sempre adia”.
Desde o primeiro trecho da viagem simbólica que empreende rumo ao litoral de Pernambuco, Severino depara-se com a morte: em funerais, velórios, no discurso de uma carpideira e, enfim, em pleno terreno da nova terra prometida, no diálogo infernal entre dois coveiros. Assim, ao encerrar sua jornada, só pensa em saltar “fora da ponte e da vida”, pois vê seus sonhos frustrados pelo peso da realidade e sua invencível aliada, a indesejada das gentes: “sempre há uma bala voando/ desocupada”.
Todavia, acontece o milagre, a vida renasce, “com sua presença viva”, mesmo quando é “explosão/ de uma vida severina”. Neste ato sempre restaurador – embora tão velho quando o mundo –, o parto, Severino, que perdera a esperança no caminho, recebe-a de volta para perpetrar uma nova viagem, no tempo agora. Ele também renasce. Aquele espaço é seu novo mundo e só lhe resta viver, fazer dele o que seus braços comportam. A provação que sofreu não foi capaz de vencê-lo. Ele a suportou como pôde e, mesmo quando pareceu desistir – ele não sabia –, apenas chegava ao paroxismo da tentação que lhe foi imposta, e da qual, fortalecido, renasceu para a vida. Foi como se Deus o guiasse, em desafio, da escuridão máxima à luz extrema.
Como Sísifo, ele sofreu o peso da ascensão ao cume sufocante e depois revigorou-se num alívio quase impessoal, ao tomar consciência de sua condição de ente que caminha para a morte, e ao adquirir a compreensão necessária de que, mesmo assim, é bom estar na vida, é preciso lutar por ela e tentar ser feliz, quaisquer que sejam as circunstâncias. Nenhuma vida, por mais vil que seja, deverá ser descartada. Sua provação não era senão um aprendizado in vivo, que lhe permitiu salvaguardar o bem mais precioso que pode existir: a vida.


Perfil publicado originalmente na revista Entrelivros, #20.
Pintura: Criança morta (1944), de Cândido Portinari.

2 comentários:

Hitch disse...

Há um dedo mínimo de genialidade em cada parágrafo. De Macabéia a Severino. Quem diria tanto com um mínimo de recursos? No mais, mande notícias. Aquele abraço.

Emmanuel Mirdad disse...

Excelente, meu amigo!