"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

NINHO VAZIO

O filme argentino Ninho vazio, de Daniel Burman, é metalingüístico. Também é uma aula de criação literária, mais precisamente de narrativa.
Passa-se quase todo entre duas seqüências menores, que o enquadram. É, assim, uma narrativa dentro de outra narrativa, uma ficção fechada no espaço de outra ficção: aquilo que em Teoria da Literatura chamamos de relato enquadrado. E a narrativa que constitui verdadeiramente o filme, o Ninho vazio, é a trama que o dramaturgo imagina enquanto espera que sua filha volte da noitada de sábado com o namorado.
Nesse ínterim, ele cria o argumento de uma história que pretende escrever, e é esta história, ainda em estado mental, que se constrói diante de nós – no decorrer do filme –, tendo o próprio escritor como protagonista, e girando sempre em torno de sua biografia, alterada, porém, pela habilidade que ele próprio, como autor, tem de distanciar o que está perto e aproximar o que está longe.
A trama se resume a um desfilar de motivos que lhe foram oferecidos pela própria vida e por aquela noite, passada no restaurante com os amigos de faculdade de sua esposa: o médico psiquiatra que ele conhece na mesa e com o qual mantém uma conversa à parte e que se torna seu conselheiro; a garota que ele entrevê na mesa ao lado e pela qual, ao menos por um instante, se apaixona; a menção por parte da esposa ao namorado da filha, que também seria escritor e ganha relevo na história como um contraste ao pai-autor-chato; o recorrente CD de música francesa, que acaba por ser o elemento que nos revela a natureza ficcional ou onírica daquela seqüência de breves e bem-humorados fatos cotidianos e familiares... E o mote do filme, largado no início por um fortuito comentário de um dos convivas, mais ou menos assim: no fundo sempre há influência biográfica. Claro! Mas não como repetição. Escrever e filmar é fazer reviver, preencher de novo o ninho já vazio, mas sempre de outra forma, jamais alcançada pela vida: “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”.
Por tudo isso foi que, ao fim da sessão, comentei com um amigo que Ninho vazio era um filme atraente, despretensioso, preciso e sofisticado. Como quase tudo o que a Argentina tem produzido ultimamente, tanto em cinema quanto em literatura.

5 comentários:

Futeboleiros disse...

Gallo,

vou arquivar os seus últimos posts para consultas futuras. Verdadeiras aulas de Literatura e Cinema. Vida Longa, amigo...

Tom

Senhorita B. disse...

Mayrant,
Seus textos sempre me orientam e inspiram.
Abraços,
Renata

Hitch disse...

Só um único agravo: eu não assistir ao filme.

Lidi disse...

Mais um na lista de filmes que pretendo assistir. E uma indicação mayraniana fica no topo!

M. disse...

Mayrant, depois de ler o seu texto, parece que o filme ficou ainda mais bonito e interessante. Abraços.