"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

CAPITÃO VITORINO, VOZ DOS HUMILHADOS

Considerado por muitos uma espécie de Quixote sertanejo, aprisionado a um mundo de ilusões, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha – personagem do romance Fogo morto, de José Lins do Rego (1901-1957), publicado em 1943 – vai muito além deste contorno simplista, pois sua luta em favor dos humilhados e ofendidos, ainda que insensata e meio burlesca, está longe de ser um sonho, um simples devaneio: é o resultado da realidade brutal que o rodeia e uma necessidade premente, da qual ele se ocupa sem vergonha.
No lombo de sua burra, o Capitão Vitorino sai pelos engenhos de açúcar a insurgir-se contra a prepotência dos senhores rurais, a ousadia da polícia e a crueldade dos cangaceiros. À sua volta, porém, depara-se com a ignorância, a penúria, a fleuma e a incompreensão, quando não com a zombaria, da molecada maltrapilha e esfomeada, que segue às suas costas gritando sem piedade: “Papa-Rabo! Papa-Rabo!” Seu método firma-se numa ironia estóica e na oportuna consciência de que na vida, e em especial nas regiões inóspitas como o sertão nordestino, tudo se transforma para um fim irremediável. Antes de mais nada, importa conquistar a liberdade de agir e falar, conforme o que é justo e melhor para o homem. Mesmo que não se alcance nenhum efeito decisivo, houve por certo um ganho em grandeza humana.
Sua natureza reflexiva lhe permite, a um só tempo, aprovar a ação do cangaceiro Antônio Silvino, que distribui aos pobres o produto do seu saque durante a escaramuça à casa do prefeito, e condenar a forma como ele trata a velha D. Inês, mulher do mesmo prefeito, e que, por ser mulher e esposa, deve ser respeitada, poupada ao terror e à violência. Neste caso, ele exige do facínora um nível de respeitabilidade e moral que o ultrapassa...
Com o Capitão Vitorino, que é o personagem central da terceira parte do romance, fecha-se no livro o ciclo mítico dos engenhos, que vai da fartura ao fogo morto. Contrapõe-se, assim, à individualidade angustiada do Mestre José Amaro, cuja filha enlouquece, é abandonado pela esposa e não sabe o que fazer de si mesmo, e ao despotismo do senhor de engenho Seu Lula de Holanda, incapaz de gerir com eficiência as suas terras. Tais personagens formam, respectivamente, o núcleo dos dois primeiros blocos da narrativa.
É de sua boca ferina e consciente, aliás, que sai a pergunta emblemática que mede o grau de transformação por que passaram na época as regiões cuja economia dependia dos engenhos de cana de açúcar, que um a um vão sendo suplantados pelo progresso, representado pelas usinas, e pelo tempo implacável, a deteriorar tudo e todos: “– E o Santa Fé quando bota, Passarinho? – Capitão, não bota mais, está de fogo morto”.


Perfil publicado originalmente na revista Entrelivros, #20.
Imagem: edição popular do romance, pela coleção Grandes Sucessos, 1983.

Um comentário:

Hitch disse...

Com uma pena dessas, melhor seguidor para o nosso Capitão Vitorino não há. É dessa pena que sai a defesa da boa literatura. Aquele abraço.