"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

LEITURAS, 42: HAIKUS

Desenho da capa: Júlia Debasse.
"Pague o dinheiro que me deve, não seja mau amigo. Se soubesse como ele está me fazendo falta, não o estaria gastando em coisas desnecessárias, embora você pense que lhe são necessárias, e me devolveria tudo, mesmo que representasse um sacrifício para você, o que não é o caso. O pior é que você sabe muito bem disso, e não dá a mínima. Sabe a penúria em que ando; se não me paga, não é porque o ignore."
 
Assim começa a novelinha Haikus, de César Aira, escritor argentino, nascido em 1949 e considerado um dos mais importantes do período posterior a Borges e Cortázar.
 
Não obstante seu assunto trivial, uma dívida monetária, o texto estabelece uma reflexão bem mais vasta e profunda, que envolve, inclusive, a sobrevivência do planeta. É nas mãos de pessoas que exploram aos homens e à natureza, nossos "devedores", que está o destino de todos nós, e estas pessoas, em geral, não têm escrúpulos: são governantes, religiosos, comerciantes, astros da mídia e da cultura pop, industriais, cantores da axé-music e do pagode etc.
 
Publicada no Brasil na coleção Pipa Livros, da editora Dantes, em tradução de Carlito Azevedo, Haikus ganhou tiragem de somente 400 exemplares numerados, destinados a bibliófilos, de acordo com a proposta autoral de Aira, que prefere chegar ao leitor específico, de literatura, que realmente lê pelo prazer estético e proveito cognitivo que a obra proporciona.
 
Com mais de 70 obras publicadas, ele privilegia as editoras pequenas, quando não as mini-editoras, em edições de curto alcance, ciente de que a maior qualidade de um texto literário reside na forma como o assunto é abordado, ou seja, na estética. Sem isso, e se tiver algum êxito, a obra não passa de moda de momento, o hit da estação. E a razão recomenda que não devemos dar pérolas aos porcos.
 
Haikus foi lançado no Rio de Janeiro em março de 2012 e ainda não esgotou.
 
Curiosidade: meu exemplar, de número 265, estava perdido numa loja da Saraiva, dentro de outro livro. Como suas dimensões são de bolso (11x15cm), meteram-no dentro de um livro qualquer, e ali ele ficou, não sei se escondido por algum leitor que não o pôde comprar de imediato ou se separado pelo acaso para que eu o encontrasse.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

LEITURAS, 41: OS AMORES DA PANTERA

José Louzeiro não põe maquiagem no fato. Mantém a Pantera como vítima de seus carrascos, mas não deixa de sugerir que, por sua conduta, ela teve igualmente a sua parcela de culpa. Quem não quer se afundar não se acerca da areia movediça. Se no crime americano da Dália Negra moviam-na a solidão e o desespero, no da Pantera, ao contrário, o que a faz se perder é o dinheiro e, em dosagem não menos decisiva, certo prazer pelo risco, alimentado por longas imersões alucinógenas e frequentes orgias.
 
Os criminosos ficaram impunes, mas a vítima, não. Tanto na vida quanto na literatura, há certa coerência nos fatos, sacramentada pela relação de causa e efeito. Qualquer passo dado ou a ausência dele levarão a um termo, a uma consequência. O provérbio não falha: se vou morrer nas montanhas, nem preciso ir lá. Foi esta a lógica da Pantera, que, em certo trecho da narrativa, a intui e não parece se abalar. A sabedoria do não-agir pode ter também as suas consequências nefastas. Ou nosso percurso sobre a Terra, nas palavras de Henri Borel, não é senão isto: "Um homem surge das trevas, sorri por um instante ao clarão da existência, e logo desaparece". Curta ou longa, a vida é a mesma vida. (Ler a postagem completa).

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

LEITURAS 40: A HORA FINAL

Primeira edição brasileira, de 1958.
Muito antes de o fim do mundo virar gênero literário e cinematográfico, o escritor australiano Nevil Shute publicou o seu A hora final (On the beach), especulando sobre o fim da humanidade, após um terrível holocausto nuclear, que dizimou toda a banda norte do planeta.
 
Este romance teve duas ou três edições no Brasil e ficou conhecido entre nós muito mais por influência do filme homônimo, dirigido por Stanley Kramer, com Ava Gardner, Gregory Peck, Anthony Perkins e Fred Astaire nos papéis principais, que pela quantidade de leitores entusiasmados. Aliás, é sempre assim com qualquer obra que, depois de sucesso de venda e crítica no exterior, acaba transformada em filme. O sujeito se sente orgulhoso de revelar que não leu o livro, mas viu o filme.
 
Publicado em inglês em meados dos anos 1950 e ambientado profeticamente em 1963, narra os últimos meses da Austrália, um dos poucos países que não foram varridos da face da Terra pela guerra nuclear, deflagrada por Rússia e China, e que acabou por envolver todas as grandes potências, como EUA, França, Itália, Alemanha e Reino Unido. Só o Hemisfério Sul sobreviveu, e entre os países remanescentes estão, além da Austrália, África do Sul, Brasil, Uruguai, Argentina, Nova Zelândia, boa parte das ilhas do Pacífico, Tasmânia etc.
 
Um casal com sua filhinha que começou a engatinhar; uma jovem alcoólatra, irônica e niilista, incapaz de se conformar com o que houve; o capitão do submarino Skorpio, cuja família, residente nos EUA, não existe mais, mas não para ele; um cientista que, sabendo que todos vão morrer em mais ou menos seis, sete meses, desiste praticamente da carreira e se torna piloto de corridas de automóvel; um fazendeiro que, ao saber que os animais sobrevivem mais tempo que as pessoas em meio à radiação que mortalmente desce do Norte para devastar o Sul, não para de pensar em quem vai alimentar seu gado depois de sua morte... Personagens em situação extrema e irreversível e que se movem entre o dilema de conservar esperança ou aceitar a morte iminente. 
 
Escrito com precisão de estilo e a objetividade característica do romance de especulação futurista, sem abrir concessões para abarcar um público mais vasto, nem dele se afastar, por ensejo intelectual, A hora final representa um tempo em que os grandes livros ainda eram escritos para ser lidos com prazer e proveito, e não para agradar a um público específico, de leitores medianos, ou ao mundo acadêmico, de leitores frios.
 
Abre-o uma epígrafe extraída de um dos mais belos poemas de T. S. Eliot, Os homens ocos, e fecha-o a certeza, expressa no poema e desenvolvida no romance, de que os homens são e serão capazes de, por ambição, capricho ou orgulho, acabar com o planeta, se não com um estrondo, com uma lamúria, que é o que resta aos australianos sobreviventes, mas que, ainda assim, até o último momento, se agarram ao que a vida tem de mais precioso: o entusiasmo de viver.

Esperemos que em breve alguma editora brasileira se empenhe em relançar, no Brasil, este clássico definitivo, cujas cores, à medida que o mundo avançou e aparentemente se livrou da bomba, ficaram ainda mais fortes, em tons quase berrantes. Se assim for, garanto que os leitores não vão se arrepender da leitura. Os grandes livros são os que superam todos os obstáculos e, mesmo melancolicamente, continuam a nos mostrar a verdadeira face do mundo.

EU NO LABIRINTO

No Sebo Labirinto encontram-se alguns livros meus. Todos novos e a preços mais convidativos que nas livrarias comuns, exceção feita ao mais recente, As aventuras de Nicolau & Ricardo: detetives (Penalux, 2014), cujo lançamento será em breve. Entre os títulos está o último exemplar realmente novo do Dizer adeus (K, 2005), esgotado há algum tempo. Se tiver interesse, clique aqui.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A COCOPA DA ÉPOCA

Cacófato, segundo o dicionário Aurélio, é "som desagradável, palavra obscena ou palavra distinta, proveniente da união das sílabas finais de uma palavra com as iniciais da seguinte". E exemplifica com as clássicas: "vi ela", "alma minha", "ela tinha" (muito comum atualmente, no jornalismo e na literatura) e outras, menos risíveis. Mas deixou de fora a mais comum do cancioneiro lírico atual da música brasileira de baixa qualidade, disseminada por rádios, tevês e internet: "eu amo ela".
 
Que o compositor sem muito talento, no calor da criação, cometa as suas cacofonias ou o escritor de livros da moda, pressionado pela criação a toque de caixa e que só se importa com a história, vá lá! Mas uma revista de circulação nacional, como a Época, que se apregoa formadora de opinião, cunhar uma chamada assim, e ainda mais na capa: "O risco Copa"!
 
Um pouquinho de cuidado não seria demais. E ainda mais que, volta e meia, a Época e suas rivais acusam os professores brasileiros de "não ensinar a gramática correta". Olhar o próprio rabo nem sempre é fácil.
 
Todavia, o que se deve perguntar é quem é o seu editor geral, quantos anos ele tem, o que faz, o quanto sabe, o que lê e se consegue detectar, de ouvido e semanticamente, uma cacofonia. No passado, quem exercia tal função era, por tradição, uma parede de experiência e saber. Hoje... Deixa pra lá! Talvez o editor geral da Época seja gago.
 
Estamos mesmo por promover uma Cocopa.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O IPTU ABUSIVO DE SALVADOR

Foto de Salvador: por Dom Mauro Morelli, em seu blog.
O prefeito de Salvador, ACM Neto, ao que parece decidiu punir o Vitória por continuar na Série A: subiu o IPTU do Barradão de 300 mil para 3 milhões!
 
Bem, humor à parte, estamos todos, em Salvador, pagando taxas de IPTU abusivas. Quem pagou em 2013 em torno de 280 reais, vai pagar este ano quase 600!
 
E a cidade continua a mesma: suja, atravancada de camelôs, com engarrafamentos quilométricos, abarrotada de casarões centenários com as marquises prestes a cair (dê uma voltinha no Comércio, mas não esqueça de levar o capacete e rezar para o Senhor do Bonfim), praças infestadas de drogados a pedir esmolas ou roubando, descaradamente, nas barbas da polícia, restaurantes com banheiros sem luz, às vezes sem água, seguramente sem papel nem sabão, e inúmeros estabelecimentos de comércio alimentício sem nenhuma higiene, com mesas e cadeiras que invadem a rua e impedem a passagem dos transeuntes. Dia desses, numa farmácia, peguei o seguinte diálogo entre duas balconistas:
 
"Você conhece aquela padaria... Que serve almoço..."
"Sei qual é."
"Ontem, encontrei uma barata no pudim."
 
Sem falar da Estação da Lapa, o mais importante terminal rodoviário urbano de Salvador. Além da sujeira e do Bar a Céu Aberto do Neto, é tiro, água de esgoto correndo, camelôs que se espalham em todo o local e tornam o entorno imundo, tapumes que obstruem a visão e escondem, adequadamente, os ladrões, que, com isso, agem mais à vontade, e alguns policiais, inoperantes, que acham tudo isso muito natural.
 
Somos quase 3 milhões de habitantes em Salvador, mas, estranhamente, não somos servidos por trens urbanos, transporte comum em qualquer grande capital do país; temos um metrô que não passa de um fantasma ou um delírio; e os ônibus, os ônibus... Esqueça-os! Se você não vai para muito longe, vá a pé, é mais limpo, rápido e mais saudável, mas cuidado com os buracos: a prefeitura costuma esburacar a cidade toda para o carnaval, e os buracos utilizados num ano são os mesmos do ano seguinte, acrescidos de novos.
 
É esta cidade que vai ser uma das sedes da Copa do Mundo de Futebol.
 
Depois de 2014, a FIFA só vai pensar em Copa na Europa, nos EUA e na Ásia. Aliás, Copa do Mundo de Futebol, pelo que representa e pelo quanto movimenta, em dinheiro e pessoas, deveria ser realizada apenas por países de Primeiro Mundo, o que estamos longe de ser. Especialmente na Bahia.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O GOL ESQUECIDO

Este livro deveria ter sido lançado em 2011. Mas, como é dedicado a minha mãe, por motivos óbvios e que o leitor há de compreender, e ela acabou falecendo naquele ano, não tive muita animação para tocar o projeto e demorei mais de seis meses, se não um ano, para reenviar as provas ao editor. Bem, quase três anos se passaram e, afinal, o livro vem a público, num período mais do que adequado ao seu tema, pois, em menos de cinco meses, estaremos em plena Copa do Mundo de Futebol. Se nada der errado, e espero que não, marcaremos mais esse gol em março ou abril, com o lançamento.

A Girafa é uma das editoras que integram o Grupo Editorial Escrituras, que publicou ano passado o meu romance Os encantos do sol.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

VÁ E VEJA 21: TRILOGIA DA VIDA

Gabriele Muccino é, sem dúvida, um dos melhores cineastas italianos da atualidade, ao lado de Gianni Amélio, Gabrielle Salvatores, Silvio Soldini, Emanuele Crialese e Giovanni Veronese, que continuaram, e até refinaram, a massa de filmes contundentes, realistas e sensíveis que são o legado do período que vai de Luchino Visconti a Giuseppe Tornatore. Pelo meio estão Pier Paolo Pasolini, Giuseppe de Santis, Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Mario Monicelli, Valerio Zurlini, Dino Risi, Franco Zeffirelli, Bernardo Bertolucci, Ettore Scola, só para citar os mais conhecidos.
 
Atento aos cineastas que o precederam, e visivelmente imbuído de renovação, Muccino consegue, em pelo menos três filmes, inspirar-se na tradição do cinema de seu país, que não é pequena, e, ao mesmo tempo, renová-la. Os três formam uma espécie de "Trilogia da Vida". São: Para sempre na minha vida (1999), O último beijo (2001) e No limite das emoções (2003).
 
No primeiro, o período da existência abordado é a adolescência, sempre rebelde e em busca de horizontes, especialmente quanto às relações amorosas. Estudantes decidem tomar a escola pública em que estudam e o fazem. Mas as questões políticas e suas reivindicações são apenas um pretexto, embalado por vídeos p&b dos anos 1960 e canções revolucionárias. O que importa, de fato, é sentir-se vivo, atuante e, além disso, conseguir, em meio ao caos instaurado, algum amor. É o que move as pessoas, e é o que fez a humanidade sobreviver. Tudo o mais é anexo. Não há fato da história humana que seja mais doloroso que a perda no amor. Nem mesmos os comunistas resistem a um rosto e um corpo bonitos.
 
Em O último beijo, os personagens, embora não sejam os mesmos, poderiam ser. A faixa etária é, agora, a dos trinta anos. Foi-se a adolescência, foram-se a rebeldia e as paixões, esvaiu-se o desejo de mudar o mundo. A tudo isso seguiram-se o casamento, o trabalho, os filhos, a morte em família, a separação dos país, o sentimento de nulidade, o vazio existencial e o desejo de que os grandes tempos voltassem. Uma paixão, súbita, não é mais avassaladora, torna-se fugaz, uma experiência apenas, pois as responsabilidades proclamam um comportamento mais adulto, e a família, o trabalho, os filhos vêm em primeiro lugar. O grande desafio não é ser outro, mas ser o mesmo, conservar-se ao lado do cônjuge, quaisquer que sejam os problemas. O desfecho, irônico, restaura o equilíbrio, ao passo que nos diz que somos, em se tratando de amor e sexo, todos iguais. Destaque para o desempenho de Giovanna Mezzogiorno, que interpreta a esposa grávida que não tolera um único deslize do marido.
 
No limite das emoções concilia os dois filmes anteriores. A faixa do casal de protagonistas é agora a dos 40-50 anos. Mas, deles, uma nova geração emerge, os filhos, na faixa dos 17. Enquanto os pais arrastam-se numa crise que parece insolúvel e levará, inevitavelmente, à separação, os filhos (um casal) despontam para a vida, rebeldes e atuantes. A garota quer entrar para a tevê e ser uma estrela, e tudo faz para conseguir isso. O rapaz, apenas encontrar uma namorada e fazer amigos fiéis. O pai revê uma antiga namorada, paixão que deixou marcas, e a mãe entra para o teatro, retomando uma de suas grandes paixões interrompidas: a arte de interpretar. Ou seja, todos estão apaixonados, ou por um ser ou por uma causa. Laura Morante é o grande destaque entre os atores. Metáfora de si mesma na narrativa, ela vive, não interpreta. Não se pode separar a personagem da atriz.
 
Se o tema dos três filmes é a vida, conciliando gêneros como a comédia, o drama e o melodrama, o ritmo, no entanto, é de filme de ação, de aventura. E aqui está uma das grandes contribuições de Muccino. A condução narrativa é frenética, com cortes bruscos e intensa movimentação no tempo e no espaço. Correria o tempo todo. Há, de certo modo, um frenesi de viver, o que tanto intensifica a vida quanto a esvazia de experiências. Nem sempre mais é melhor. Mais vale uma experiência lenta e proveitosa que várias, em caudaloso fluxo, das quais ficam somente esboços, pálidas imagens. Não seria demais sugerir que o diretor, também roteirista, solicita que atentemos para a vida que estamos vivendo, rarefeita e diluída, imersa numa velocidade que não nos deixa ser quem somos. Ou o permite apenas em parte, na superfície.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

DESAPARECIMENTOS

Hiroxima, depois que a Bomba a fez "desaparecer", em 1945.
Recebi, do escritor Carlos Barbosa, um e-mail com um texto (de autoria desconhecida) afirmando que nove "coisas" desaparecerão de nossas vidas nos próximos anos. São: o correio, o cheque, o jornal (impresso), o livro (impresso), o telefone fixo, a música, a televisão, os bens pessoais físicos, a privacidade.

Faltou ao autor do texto admitir que ele próprio vai desaparecer, como tudo e todos no Universo. Ora, não sei qual o assombro com relação a estes supostos desaparecimentos, nem tampouco a novidade. Se até Roma, que era o império dos impérios, desapareceu. Se até os dropes Dulcora, que eram como poeira nas vitrines das bonbonnières dos cinemas de antigamente, desapareceram. Epa, a palavra "bonbonnière" também desapareceu, do português brasileiro! E igualmente os cinemas de antigamente.

Volta e meia, aparecem na internet esses textos sem autoria, pregando originalidade, terror ou pessimismo. Já até acabaram com o mundo, duas ou três vezes. E mataram antecipadamente algumas pessoas, sempre célebres. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", já dizia Camões. Nada é perene, e mesmo o homem só o é, "temporariamente", enquanto espécie. Nenhuma novidade, portanto. Nenhum assombro: eu estou morrendo, você está, todos estamos. Somos desaparecimentos em curso. "Desde o instante em que se nasce já se começa a morrer". Cassiano Ricardo, poeta desaparecido.

O melhor a fazer é não dar atenção a esses textos sem autor. São o que há de mais execrável, tanto em ideias quanto em forma. E não servem mesmo para nada, nem sequer para nos tirar o sono.

Num dos melhores contos de Machado de Assis, que provavelmente o autor desconhecido não lê (verbo no presente, porque a leitura de literatura é sempre releitura), Deus volta-se para o Diabo e diz que, se ele não pode ser original ao escrever, que não escreva. Sábio conselho, que a Legião não logra seguir. Eu, inclusive. Laus Deo!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

LEITURAS 39: AS PERNAS DE ÚRSULA



Primeira edição: Agir, 2006.

Num restaurante, enquanto janta em companhia da esposa, do filho recém-nascido e de um casal de amigos, Eduardo entrevê as estonteantes pernas de uma desconhecida... É então que tem início a sua odisseia. Ao mesmo tempo que rememora sua vida com a esposa, Alice, como a conheceu e se casaram, ele peregrina em busca de reencontrar e possuir Úrsula, a proprietária daquelas maravilhosas pernas. Longe de ser uma repetitiva história de traição conjugal, ou um simples episódio de sedução, As pernas de Úrsula se insere na tradição dos relatos de conteúdo sensual ou erótico que os iluministas consideravam obras de autoconhecimento. Ao experimentar desejos irrefreáveis por outra mulher, e abdicando, de imediato, de qualquer sentimento que não o de apenas a possuir, estar entre aquelas pernas, o protagonista se conhece e se aceita, para ao fim chegar a uma conclusão a que as pessoas, em geral, viram as costas ou procuram relevar: de que, muitas vezes, ama-se não a pessoa, mas o amor, a chance ou a possibilidade de “fazer amor”. No restante dos casos, prevalece a idealização romântica. Que não passa de teatro do mundo.
 
Publicado originalmente na Verbo21.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

LEITURAS 38: MARCE


Foto: Stephanie Wicks por Kim Guerra.
O que se espera de qualquer romancista é que ele nos apresente um mundo que só ele conhece e que, doravante, também nos será íntimo. Não interessa se no presente, passado ou futuro do mundo. Ou até mesmo nos três tempos, simultaneamente. O mais importante é que o autor nos convença da existência daquele instante e daquele lugar. Isso Gláucia Lemos obtém, com sobras. Seu romance Marce (Solisluna, 2013), subintitulado Espelho chinês, é um preciso exemplo de universo específico romanceado. Narra a história da personagem-título, que, depois de 26 anos longe, volta ao solar da família para, entre a irmã, os primos e os tios, participar da leitura do testamento de sua tia Elaine, que a criou e à irmã, depois da morte de seus pais. Ovelha negra, ela não espera nada dos parentes e conta sua história, passada e presente, com o intuito de expurgar suas feridas e se redimir de si mesma. O cenário é de cidade pequena; o clima, chuvoso; e os personagens, sem qualquer maniqueísmo por parte da autora, alternam os estados de ânimo que são o fundo e a forma de todas as pessoas: simples seres humanos, com qualidades elogiáveis e equivalentes defeitos, alguns bem terríveis. Se não fosse assim, de que valeria ler literatura? Sonhar por sonhar, num leito é mais cômodo do que entre páginas. E o romance de Gláucia Lemos é exatamente isso: um refúgio de onde saímos mais conscientes do que sejam o mundo e os homens.

Publicado originalmente na Verbo 21

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

LEITURAS 37: CONTOS DE NATAL

Ilustração: Rogério Borges. 
Abri ontem o volume Os melhores contos de Natal (Círculo do Livro, 1988) e reli alguns dos mais tocantes contos de natalinos já escritos. Estão lá autores como Charles Dickens, Guy de Maupassant, Machado de Assis, Jack London, Górki, O. Henry, Hawthorne, Bret Hart e Robert Louis Stevenson. Os contos são realmente os mais clássicos do gênero, mas há algumas surpresas, como o sensível relato A lenda da casa número 15, da autora da extinta Iugoslávia, de idioma servo-croata, Ida Fürst, e O pároco, do brasileiro Coelho Neto, hoje esquecido e odiado, por seu estilo, considerado por muitos excessivo e empolado. Bem, quem vier a ler O pároco não vai achar nada disso e sairá do conto entusiasmado para ler outras obras do autor. Sabemos, de há muito, o quanto os brasileiros amam diminuir e até destruir gratuitamente seus artistas e heróis, e não seria nenhum disparate se algum leitor, aqui despertado, descobrisse que Coelho Neto tem valor e ainda é legível e atual.
 
Há contos magistrais neste livro, que forma, em parte e no todo, um espectro profuso e variado de vozes e cores, no qual teses pró e contra o Natal emergem, elevando este acontecimento e impondo aos leitores horas de prazer e proveito. Missa do Galo, Cântico de Natal, Como Papai Noel chegou a Simpson's Bar, Sonho de uma noite de Natal, Natal no rancho e Markheim são, talvez, os mais famosos. Todos, porém, deixam sua contribuição tanto para uma compreensão mais profunda do Natal quanto da vida, espécie de contraponto ao que se espera da noite natalina. Neste aspecto, um dos melhores contos é, sem dúvida, o de Górki, pois, em sonho, seus personagens natalinos, quase todos pobres e tristes, voltam para lhe cobrar que seja menos cruel, pois a vida já o é, suficientemente. Um dos personagens lança-lhe na cara esta prédica: "Por que escreveu essas coisas? Para que vive inventando essas desgraças, essas tristezas? Que pretende com isso? Desfazer o que resta de fé e esperança no coração dos homens? Tirar-lhes a confiança na redenção, mostrando-lhes somente o mal? Aniquilar o desejo de viver, apresentando a existência como um suplício sem fim e sem remédio?" O narrador, estarrecido, mal consegue balbuciar uma defesa, alegando que é o que fazem todos os escritores, imaginam "cenas bem tristes, bem tocantes, para despertar", em seus leitores, "sentimentos compassivos, abrir os corações à piedade".
 
Metalinguístico e, ao mesmo tempo, um belo relato natalino, este conto ironiza com o encarceramento dos autores aos gêneros, sugere que precisam ser mais ousados e admite que, aqui e ali, os personagens tomam as rédeas das criações literárias e, à revelia do autor, abrem e fecham portas. Ao findar sua leitura, me lembrei do que me disse, recentemente, uma jovem leitora a quem perguntei sobre suas leituras de Máximo Górki. Ela simplesmente me disse que deixou de ler Górki, porque leu em algum lugar que ele escrevia mal. Mal ou aquém ou além do gosto e da capacidade de compreensão de quem o leu e criticou? É o mistério.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

POEMA DE NATAL

Foto: A. Café-Gallo.
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje à noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

VINÍCIUS DE MORAES (1913-1980). Poeta cujo centenário comemorou-se este ano e um dos mais originais de língua portuguesa. Profundo, lírico, grave. Infelizmente, a propensão à música, criando melodias e letras hoje gravadas no imaginário dos brasileiros, ofuscou a sua poesia.