"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 20 de junho de 2015

INÍCIOS EXEMPLARES, 3: Graciliano

Capa da primeira edição, 1934.
"Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
 
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa."
 
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1996. 224p.
 
ESTILO. Uma aula de ironia. O narrador, atenuado de sua prepotência autoral, pretende distribuir as funções de criação entre seus amigos e, com isso, enriquecer sua obra e as "letras nacionais", àquela altura empobrecidas, pois destituídas de assunto elevado e erudição, escritas em português ruim, mal postas no papel e sem literariedade, pela qual ficaria responsável, pasmem, um jornalista! Refere ainda, sutilmente, o fato de que, no Brasil, com muita frequência, o autor paga as edições de seus livros. Graciliano Ramos não poupa ninguém, talvez somente o leitor.

Um comentário:

Unknown disse...

Uma vez, de passagem pela pós-apocalíptica estação da Lapa, entrei num sebo e encontrei "Infância" de Graciliano Ramos; Eu havia lido e gostado muito de "Vidas secas", então resolvi comprar o livro para ler depois que eu terminasse o romance que estava lendo no momento. Quando cheguei em casa e fui guardar o livro dei uma olhada no primeiro paragrafo:

"A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, A quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou."

E foi assim que eu abandonei a leitura do romance em andamento e passei a ler "Infância".
Se eu pudesse dizer de uma só pessoa que a tal escreve bem eu acho que o faria de Graciliano ramos.