Mais uma tradução de Medeia, pela 34. |
Millôr Fernandes era um autor inquieto e multifacetado. Da poesia ao desenho, dos contos humorísticos às ácidas críticas ao mundo, da dramaturgia, em que experimentou o quanto pôde, às traduções de peças do teatro clássico, sempre se exercitou como um inconformado.
Neste último campo, a tradução, ele obteve um êxito incomparável: fez os textos de Sófocles, Eurípides, Shakespeare, Molière ou Aristófanes soar tão atuais quanto qualquer peça escrita hoje, ou até mais. E de modo que o pensamento dos autores ou suas reflexões mais caras a qualquer leitor se conservassem, vivos e atuantes.
Na história de Medeia, por exemplo, cujo argumento é tão banal quanto qualquer novela ordinária da Globo, as reflexões mais argutas da peça, verdadeiros aforismos de tão precisas, permanecem na mente do leitor, trabalhando naquela engrenagem que é o ponto final de todo texto exemplar do teatro ocidental: a consciência humana, que deve, a qualquer custo, ser excitada e, se possível, transformada.
Ao abandonar a família e a pátria em favor de um novo amor, Medeia sequer supõe qual será seu destino e, ao presenciá-lo, desfia todo o seu amargor e sua decepção, em palavras que se tornam a essência da vida e o seu malogro.
"Só agora aprendes que todo ser humano ama primeiro a si mesmo e depois, quando pode, ao seu vizinho?
Ou porque tem o egoísmo nas entranhas ou porque o impulsiona uma cobiça."
"Se mostrarem conhecimentos novos aos tolos, serão considerados tolos pelos tolos. Em resumo: se na cidade tua fama de sábio ultrapassar a dos que se julgam donos da sabedoria, serás um estorvo e um desagrado."
"O tempo, que corre todo o tempo há tanto tempo, tece gemas iguais para homens e mulheres."
"Ó, Zeus! Por que deste ao ser humano a capacidade de saber se o ouro é falso e não puseste na fronte do homem um sinal pelo qual reconhecer que abriga uma alma abjeta?"
"Vocês, mulheres, têm a estranha ideia de que tudo está perfeito se o leito conjugal foi preservado. Mas, se alguém macula os lençóis que julgam intocáveis, a vida se desfaz, tudo é infelicidade."
"O que vem de um velhaco é sempre uma velhacaria."
"A mim, a quem ele dizia amar pelos tempos afora, agora me olha com olhar de náusea."
"O ouro tem sobre o espírito humano mais poder do que mil palavras de convicção."
"E posso também afirmar que os mortais que não passaram pela experiência de gerar filhos são muito mais felizes do que os que geraram. Os que não geraram são poupados de muitos infortúnios."
"Nenhum ser mortal é feliz; a fortuna pode sorrir a um e fazê-lo mais feliz do que os outros. Mas feliz nenhum é."
"Os deuses sabem quem começou esta espiral de horrores."
"Do alto do seu trono olímpico, Zeus tece o fio dos fatos e dos destinos, trama que quase sempre ultrapassa a compreensão dos mortais. O esperado não se realiza, o imprevisível encontra seu caminho. E assim termina o drama."
Em pouco mais de noventa páginas, tem-se praticamente um resumo da vida. O individualismo humano, a cobiça, a inveja, o despeito, a ação irremediável do tempo, o fim do amor, os casamentos de convenção, as traições, a igualdade entre homens e mulheres, a incapacidade humana de atingir a felicidade, a ideia de que a vida é uma condenação, a submissão do gênero humano à mão de Deus ou do acaso...
Mas muito desse conhecimento teria se perdido não fosse o tradutor um ótimo leitor e igual escritor, capaz de fazer ressoar em português a magia das palavras e do pensamento gregos.
Trechos extraídos de EURÍPIDES. Medeia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 92p. Em tradução, claro, de Millôr Fernandes.
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