"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 24 de abril de 2009

POESIA DESSACRALIZADA

Ontem, no recital de Georgio Rios, Paulo André e Thiago Lins, na Praça de Poesia da Bienal do Livro da Bahia, falei com o Lima Trindade que o trio de Feira de Santana faz uma poesia que em outros países, como EUA, França e Argentina, seria aceita como uma arte literária de primeira qualidade, baseada na memória, nos sentimentos pessoais, nas impressões oculares e fortemente influenciada pela linguagem e pelos temas de outros campos do conhecimento humano, como a Filosofia e a Psicanálise. Mas estamos no Nordeste e na Bahia. Aqui, infelizmente, o "típico" e o "local" são qualidades que jamais se exaurem e prosseguem a combater e alijar diferenças estéticas e escolhas individuais. Sem mencionar o fato de que a métrica e a rima consoante (amor\dor) ainda são, para muitos poetas daqui, critérios de valor e o único recurso poético evidente, em detrimento do ritmo, das aliterações, das assonâncias, dos incidentes sonoros, dos vazios e não-ditos, da polissemia. À guisa de exemplo, leiamos o poema abaixo, do poeta norte-americano Douglas Messerli, traduzido por Cláudia Roquette-Pinto.

NÃO ESTAVA AQUI QUANDO O SOL NASCEU

O sonho
num acesso
de pretextos
matutinos
vigia
com pequenos espinhos
o novo dia
findo, mas surgindo
à porta
do profundíssimo
ocaso, nos afina
com o atraso.

(DOUGLAS MESSERLI. In: Primeiras palavras. São Paulo: Ateliê, 1996.)

Poesia humana e sem Deus, embora, como dizia Barthes, sempre uma guloseima sagrada. Um dizer que se diz para não dizer outra coisa. E que é único, sem repetições, nem permanência. Aprecie aquele leitor ou leitora que, sensível, se permita viver outros "eus", outros delírios, outras sonoridades, pois o Universo é ritmo (e a vida humana, uma constante descoberta de si mesma). Sem ritmo, não há poesia, não há vida, sonhos, nada. E o que nos restará, ao fim, é o que as palavras encenam.

5 comentários:

Emmanuel Mirdad disse...

Ironia: divino desabafo!

Lidi disse...

Oi, Mayrant,

Adoro os meninos (Thiago, Georgio e Paulo), queria muito ter assistido a apresentação deles, mas não pude ficar mais tempo. E adorei o post, sempre aprendo muito com você.

Abraço.

Hitch disse...

Meu muito obrigado. Versos, sons e ritmos sempre. Belíssimo poema. Aquele abraço.

Caio Rudá de Oliveira disse...

Oi, Mayarant. Sou um dos que estavam para prestigiar esse trio, especialmente o conterrâneo Georgio.

Gostei muito do que vi e ouvi. Uma atmosfera descontraída e agradável alicerçando uma apresentação de qualidade.

O trabalho dos três é muito bom mesmo. Uma pena que aqui se valorize muito rimas e sentimentos e não essa ótima poesia fotográfica que fazem esses rapazes.

Além do mais, foi um prazer conhecê-lo...

luizgusmao disse...

[...] pois o Universo é ritmo (e a vida humana, uma constante descoberta de si mesma). Sem ritmo, não há poesia, não há vida, sonhos, nada.não seria a vida uma busca pelo ritmo que melhor nos ajuste/contraste individualmente ao universo? oq será o universo - deus/logos/dharma - se não a fonte da vida, a origem e o fim doq existe mesmo em potencialidade?

chegando aqui via 'entretantos'. é um prazer desobedecê-lo, mayrant. já o adicionei ao meu google reader.