Edição brasileira, Artenova, 1975. |
Num dos volumes de contos de Ray Bradbury, Remédio para a melancolia [A medicine for melancholy, 1948], há um relato de antecipação que é um retrato de nossa época, muito embora muitos possam argumentar que é só literatura, que não expressa a realidade. Não diria que não, mas, como metáfora, é a própria realidade em que vivemos. Se não, vejamos.
Em O sorriso, um breve conto de cinco páginas, pessoas se aglomeram numa fila imensa e, enquanto esperam, conversam. Na fila, está um menino, Tom, que, ao que tudo indica, e essa é a desconfiança das pessoas em volta, é um apreciador de arte. É o ano de 2061 e, em meio a um caos apocalíptico, causado obviamente por bombas, a maior diversão são os "festivais", nos quais o passado, em especial o artístico, é destruído e incinerado. Sob o efeito de muita bebida e riso contagiante, queimam-se livros e se destroem todo e qualquer objeto artístico e cultural. De valor, claro! "Ninguém quer a civilização", diz um dos personagens. "Você fica odiando tudo o que liquidou com você. Assim é a natureza humana."
Descobrimos em seguida que quem está na fila poderá cuspir na Monalisa, de Da Vinci! E logo chega um emissário do Governo, que comunica à turba que as autoridades decretaram que o quadro ali presente seja entregue ao povo, para ser destruído. É o que basta. Se até aquele momento as pessoas hesitavam, sobretudo porque Tom, sendo um dos primeiros da fila, ao contemplar a Monalisa, achara-a linda, agora não há mais remédio. O povaréu avança, e logo ouve-se o som de um rasgão: "A multidão estava alucinada, e as mãos pareciam pássaros esfaimados beliscando o quadro". Tom, a duras penas, consegue um pedaço da tela, e pouco depois sabemos o motivo: em casa, depois de levar uma bronca dos pais e dois pontapés do irmão, ele adormece, com o pedaço da Monalisa na mão a repousar sobre o peito: e naquele pedacinho do que fora por séculos o creme do creme das obras de arte, estava o sorriso, o sorriso lindo, discreto e infalível.
Estamos destruindo o mundo, embora pareça que não. Ouça Elis Regina ou Connie Francis e depois Ivete Sangalo ou Ana Carolina e diga que não. Dê um passeio pelas exposições de arte que a Secretaria de Cultura da Bahia promove e diga que não. Abra um desses inúmeros livros premiados, de autores brasileiros ou estrangeiros, tente lê-los e diga que não. Examine com atenção as propostas de incentivo à produção artística e cultural do Governo da maluca da "presidenta" e diga que não. E não é assim só no Brasil. Aqui só é mais grave e infame, porque nossa "pátria educadora" não educa. Embroma. (Aliás, é da natureza dos Governos embromar. Não sei por que me surpreendo.) E há países em que a destruição tem sido literal, a machado e marreta, sem apelação.
No encontro que tivemos, eu e Mirdad, com Hélio Pólvora, em janeiro, ele nos disse que tinha deixado de aceitar ser jurado de concursos literários, desde que, certa vez, conversando com um dos membros do júri de um concurso renomado sobre e dificuldade que era ler até quinhentos livros num prazo tão curto e escolher "o melhor", o sujeito se voltou sério para ele e disse: "Eu não perco tempo, Hélio! Jogo para cima uns dez, e o que cair na minha mão eu leio!" Excelente conselho! Opa, por um instante pensei ter ouvido a voz de um porta-voz do Governo...
2 comentários:
Boa lembrança, Mayrant. A sorte é que sempre haverá um Tom. Vamos cuidar para que ele possa existir. Abraço!
Esse declínio parece que existe desde que a civilização se aprumou. Autores do séc. XIX já falavam dessa "perda de valores". Nem quero imaginar o que teremos daqui a 30 ou 40 anos (se é que vou sobreviver). Sobre a "técnica" utilizada pelo jurado para a escolha dos textos, eu creio se tratar de uma brincadeira. Não duvido que possa acontecer, mas não sei alguém teria coragem de assumir isso, ainda mais para uma pessoa séria como o Pólvora.
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