Muitos livros, leitura e literatura para todos nós!Cartão: de autoria de A. Café-Gallo (2010).
Vivemos hoje um frenesi pela literatura fantástica, muito embora tal interesse fique restrito quase que exclusivamente às histórias de vampiros e de fantasmas. O fantástico mais sutil e irônico, de Borges, Rulfo, Buzzati, Fuentes, Machado de Assis, Tchekov, Maupassant, Edgard Allan Poe, Oscar Wilde, Gauthier, Kafka, Murilo Rubião, J. J. Veiga e Victor Giudice, permanece cativo de uma fatia específica de leitores, talvez mais refinados. Há ainda os autores esquecidos ou em via de completo desaparecimento, como Saki e W. W. Jacobs, autor do célebre conto A pata do macaco. Seria proveitoso para os leitores mais jovens se uma editora brasileira criasse uma coleção de literatura fantástica que resgatasse esses autores em antologias ou reedições populares, em formato bolso, de algumas de suas principais obras no gênero. Isso já foi feito no Brasil, sem muito êxito ou êxito moderado, e em Portugal, com sucesso. Em solo luso, a Editora Estampa incluiu na coleção Livro B um elenco fortíssimo de autores fantásticos, entre os quais Charles Nodier, Léon Bloy, Ambrose Bierce, Jean Potocki, Nerval, Lovecraft, Balzac, Gauthier, Henry James, Horace Walpole, Fitz James O'Brien, Remy de Gourmont, Marcel Schwob, Hoffmann e Paul Féval. Dos anos 1990 para cá, no Brasil, afora as antologias, das quais a mais popular é a de Flávio Moreira da Costa, Os melhores contos fantásticos (Nova Fronteira, 2006), e a mais criativa a de Bráulio Tavares, Contos fantásticos no labirinto de Borges (Casa da Palavra, 2005), tivemos algumas tentativas mal sucedidas de coleções do gênero. Uma das mais importantes foi a da editora paulista Marco Zero. Em 1994, seus editores projetaram e trouxeram a público a Coleção Mistério. Foram programados cinco títulos, mas acredito que o volume Monsieur Maurice, de Amelia B. Edwards, não chegou a ser publicado, pois jamais o encontrei, nem conheço ninguém que o tenha lido ou o possua. A coleção iniciou-se com O amante fantasma, de Vernon Lee, seguindo-se A casa desabitada, de J. H. Riddell, O fantasma dos Guirs, de Charles Willing Beale, e A bruxa âmbar, de Wilhelm Meinhold, que tem uma história curiosa: tornou-se um livro maldito, porque, uma vez que forjava na sua estrutura um documento histórico do século XII, não foi aceito como ficção, mas como verdade, tanto pelos leitores quanto pela Igreja, que o repudiou. Percebe-se que a coleção enfatizava os tradicionais relatos de fantasma, mas pretendia migrar para outros campos do fantástico, pois, de súbito, desviou-se para a bruxaria com o livro de Meinhold. Outra evidência é o questionário que a editora colocou no volume de Beale, para que o leitor preenchesse e postasse. A questão 7 diz: "A coleção tem cinco livros previstos. Você gostaria que tivesse mais?" Pelo ocorrido, bem poucos se manifestaram favoravelmente, e a coleção gorou.
Os editores Ana Mello e Marcelo Spalding, também "minicontistas", deram generosamente destaque na Veredas de dezembro aos meus minicontos publicados em Nem mesmo os passarinhos tristes (Rio de Janeiro: Multifoco, 2010). Entrei lá para conferir e agradecer e, para o meu contentamento, li muita coisa boa no gênero miniconto, de autores como: Ana Mello (uma moderna historieta de Natal), Wilson Gorj (a eficiente ironia de sempre), Chico Pascoal (que tem um blogue ótimo: Microrrelatos do Cheeko), Eduardo Cama, Carlos Tijolo e Maria Regina Caetano Soares. Conheçam a Veredas, revista de minicontos e micronarrativas. Além dos textos destes gêneros, publica artigos, livros no formato E-BOOK e aceita colaborações. O link: http://www.veredas.art.br.
Não sei ao certo o que espero de um poema quando o leio. Como não sei o que encontrarei num conto ou num romance, num filme ou numa peça teatral. Se não fosse assim, eu não diferiria em nada de um simples leitor de revistas e jornais ou de um assíduo espectador de programas de tevê. E é porque só me deparo com o “esperado quando inesperadamente me deparo com ele”, que sou um obstinado leitor de literatura. Retornar a um texto literário, qualquer que seja o gênero, é refazer o instante que o engendrou dentro de nós, trazer de novo à superfície sensível de nossos sentidos aquela “inesperada novidade”. Tornar a ler um poema é reinaugurá-lo, ainda que esta segunda leitura não esteja distante da primeira senão alguns minutos, ou mesmo segundos. E esta reinauguração não é gratuita: promove-a o delicado instante em que nos deparamos com o inesperado, que, no entanto, nos convence, com sua força, de que o esperávamos há séculos e que até “o procurávamos”. Três ou quatro poemas do novo livro de Georgio Rios me causaram este efeito singular quando o li. Não vou falar da “suposta evolução” do poeta, nem da felicidade que se instala no leitor, ao descobrir o quanto o poeta é encantatório. Esta é uma tarefa muito velha e que prefiro deixar à crítica oficial de poesia do nosso tempo, se é que ela existe e é necessária, afinal de contas o que é o poema senão um objeto para sentir e tão somente sentir? Como nestas duas surpresas:
Os grandes escritores se fazem em surdina, sem alarde. Dispensam outdoor e autopromoção. Vão como madeira no rio. Seguem com seu estilo, seus assuntos, sua verdade. E não fazem senão pôr a linguagem a serviço destes aspectos. Falo do gaúcho Sérgio Faraco e de seu excelente volume de contos de fronteira Noite de matar um homem. Raramente lemos na literatura brasileira atual um livro de contos tão consistente. Um livro que transpira vida e estilo. Um livro com trechos tão reveladores e tão bem fixados, em palavras simples, de seu meio, e que, no entanto, reverberam, de modo que muito depois da leitura os contos continuam a ecoar. No excepcional "O céu não é tão longe" um homem perde a vida por causa de uma mulher e, enquanto agoniza, transitando para o outro lado, reflete: "Não era tão longe o céu. Que lhe cobrasse a vida chica! Ao menos não a perdia na doença, mas por um corpo dourado de mulher e com o recuerdo daquela tarde na tapera". É, aliás, nos contos de base sexual, como a nos sinalizar que é no sexo que a vida começa e é também ali que ela acaba, que o autor resvala a perfeição. Em "Lá no campo", um rapaz se embola com uma moça na escuridão de um velório, ao passo que dois velhos concluem que isso é a vida. Em "Dois guaxos", um rapaz vai embora de casa não porque anseie partir, mas porque é preciso fugir da beleza da irmã, que acabou de se entregar a um "chiru": "Seus olhos se encheram de lágrimas e ele se ajoelhou, aproximou o rosto do ventre da irmã. Um beijo, e o sexo dela tinha um cheiro delicado, profundo". Em "Bugio amarelo", um sujeito encarregado de proteger a esposa de um amigo acaba cedendo a um apelo terrível, em forma de provocação: "Se tu é mesmo amigo dele, tu me come". O resto é vingança, duelo, lenda em Uruguaiana, Itaqui e Barra do Quaraí. Em "Noite de matar um homem", o relato central do livro, espécie de síntese de todos os demais, dois homens encarregados de matar um terceiro o fazem quase sem querer, doendo, sofrendo mais do que sofreu o morto enquanto agonizava. Claro, porque se viver é difícil, matar também não é fácil. Nos demais contos, Faraco conserva-se em sua coerência de estilo e assunto, de experimentações formais e representação do ambiente de fronteira: "Hombre", "Aventura na sombra", "Travessia", "Adeus aos passarinhos" e outros relatos são tanto revelações humanas quanto mergulhos sem limite no ato de viver. Experiência única, esta, de ler o volume Noite de matar um homem, de Sérgio Faraco, pois são contos que reverberam na mente e nos olhos, como facas afiadas num duelo pela honra e pela vida.
Se você gosta de ler e não se importa de esperar muito tempo no ponto pelo "ônibus que não chega nunca", o melhor lugar para morar é Paris. Criação da loja sueca IKEA, esta sala de espera nos faz desejar que o ônibus realmente não venha jamais: livros, sofá, abajur, globo terrestre, bibelôs, mapas e quadro de avisos. O prefeito de Salvador, BA, João Henrique, deveria se mirar neste exemplo e reproduzir por aqui apenas 5%. Bastaria. Quem já foi à estação da Lapa, principal terminal rodoviário urbano de Salvador, conferiu que o ambiente mais parece um refúgio de zumbis depois de uma hecatombe nuclear. E para ler, nem as placas que sinalizam as linhas de ônibus e seus itinerários prestam. Algumas nem existem mais, substituídas por borrões de tinta, pintados à mão por um funcionário mal pago e sem estímulo. Mas há quem goste de Salvador assim mesmo: bem pitoresca!
É um consenso se afirmar que o criador da "graphic novel" é o norte-americano Will Eisner (1917-2005). De fato, a primeira publicação neste formato, que poderíamos traduzir como "romance gráfico", foi Um contrato com Deus, em 1978. Todavia (e é certo que qualquer sentido de organização do mundo ou da realidade mostra-se ao fim tão falho quanto a sua ausência), o Poema em quadrinhos (CosacNaify, 2010), do italiano Dino Buzzati (1906-1972), precede a criação de Eisner em quase dez anos e abarca, sem sombra de dúvida, o conceito de "graphic novel" proposto pelo renomado quadrinista norte-americano.
O traço cômico do espanhol Jordi Bernet se mescla à verve de Carlos Trillo e Eduardo Maicas, numa HQ que confere humor e crítica social ao contidiano de Clara, uma prostituta de rua. Perambulando pelas esquinas de uma grande cidade espanhola (Madri, provavelmente), Clara se envolve comercialmente com os mais estranhos tipos: um anão envergonhado, dois gângsteres rivais, um marido que depois de tantos anos de casado já esqueceu como se faz a coisa, um rapazinho em sua primeira vez, um padre tomado de fraqueza e esquecido de sua condição de celibatário, um professor carente de realidade e cheio de sonhos com suas alunas, um cego que não acha o caminho e até um técnico de futebol que resolve ministrar sexo para seus comandados, que, claro, com as ações de Clara, não tiveram nenhum êxito em campo. As histórias, de duas a três páginas, alternam comicidade, dor, desilusão e melancolia, pois, além de se defender nas ruas, Clara tem de criar seu filho e, como era de se esperar, sofre o preconceito e a intolerância das "mulheres direitas" do bairro onde mora. O tom irônico da série chega ao auge na história em que a protagonista, depois de estuprada por um desconhecido, volta-se para ele e diz, com estoicismo: "Sim, são trezentos... Mais cem pelo material estragado". Quadrinhos de arte de primeiríssima qualidade.
Amanhã, vou ministrar em Itaparica uma oficina de criação de minicontos que tem como base os textos do meu livro Nem mesmo os passarinhos tristes. Mas levarei também minicontos de outros autores que admiro e que partilho aqui com os leitores do Não leia! O primeiro conto, do Wilson Gorj, não tem título, e o de Dalton Trevisan é o número 11 de um total de 111, que ele chama de "ais".