"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 28 de março de 2010

VÁ E VEJA, 6

Com ecos de Godard, Fellini, Antonioni, Saura, Tarkovski, Kar-Wai e Rohmer, Um dia muito especial é um filme que demonstra o quanto a originalidade na arte reside, em muitos casos, no resgate de uma tradição, deslocada para um novo contexto, geográfico ou temporal. Mohsen Makhmalbaf, que produziu, escreveu, dirigiu e montou o filme, vale-se dos cinco sentidos para refletir sobre o amor, a vida, o tempo, a História, a religião e a poesia. Podemos seguramente dizer que este filme é semiótico e sinestésico: não é para ser "acompanhado", em cada etapa da trama, se é que há alguma trama; deve ser apreciado pelo que reúne de belo em suas imagens, de forte e verdadeiro em seus diálogos reflexivos e de irreverente em seu contínuo vaivém entre o presente e o passado, embalado por temas musicais que mesclam violino, acordeon, melodias árabes, russas e ciganas. As influências dos cineastas citados, mais do que benéficas, são fonte e caldo, apoio e veneração. O diretor não sente pudor de apresentar seus mestres e com eles fazer o "seu filme": de Godard busca o sentido dos signos que estão à nossa volta e que nos regem, ainda que não admitamos isso; como Fellini, exercita a liberdade de filmar sem roteiro prévio ou padronizado, ao fluxo da criatividade; a exemplo de Antonioni, elege a relação amorosa e a mulher como meios de reflexão sobre a existência; de Saura resgata a dança como arte e jogo de sedução; de Tarkovski captura a poesia das coisas (uma sombrinha, o Outono, árvores floridas, luzes, folhas, ruas, o princípio da neve sobre os telhados); sob a influxo de Kar-Wai, introduz a música como elemento que desperta o espectador e o envolve no encantamento da trama, que, por sua vez é esvaziada ou apenas um pretexto intelectual para que, através de diálogos nada ingênuos, embora sem nenhum panfleto, espontâneos e profundos como nos filmes de Rohmer, reflitamos sobre o que é o amor, por conseguinte a vida e tudo o mais. Um dos pontos altos do filme está na cena em que o protagonista revela que trocou um quadro de Lênin por um do Messias e depois este por um cronômetro. Ora, ele trocou a História pela Religião e depois pela consciência do Tempo, essência única de que somos feitos e da qual não podemos escapar, o motor que nos rege, conduz e esmaga. E a consciência do tempo é a certeza de que se é um indivíduo, uno, e só há um ponto de alcance, a morte. Um filme para ser admirado, por sua beleza visual e estética, e desfrutado, pois compreende uma página da vida, a vida de todos nós.

Um comentário:

O Neto do Herculano disse...

Era esse filme que me referi na LDM. Abraço.