"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

E NÃO ME ARRANCARAM

Ele estava quase , quando o telefone tocou.

A garota ia e vinha com ele num ritmo aparentemente único e não quis parar, retendo-o pelo quadril com a mão esquerda, o braço todo esticado para trás, de modo que, à luz fraca que preenchia o quarto, uma centelha úmida de suor mesclava-se à sua pele morena e quente.

Por um instante ele ignorou o apelo do telefone e manteve o ritmo, a fração de sonho que o alimentava. Mas então se lembrou...

De um pulo, estava fora da garota e longe da cama. Com quatro passos, deixou o quarto e entrou na sala, ambos exíguos e às escuras.

Mal ergueu o telefone, já sabia o que havia acontecido.

— Sr. Isaac...

— Sou eu.

— Aqui é do hospital...

— Está bem, estou indo.

— Seu tio...

— Eu sei.

E sem agradecer pousou o telefone.

A garota já havia fechado a nudez, posto saia e blusa, que caía aberta, a mostrar os seios pequenos e despertos. Estava em pé no meio do quarto, à espera, uma nuvem de tensão nos olhos. Esfregava os braços, como se transida de frio, embora fosse verão, um mês rigoroso, de dias ensolarados e noites abafadas, favoráveis à insônia.

— Meu tio se foi — ele disse.

Ela não encontrou o que dizer. Largou os próprios braços e agachou o corpo em busca das sandálias, perdidas na semi-escuridão do cômodo.

MAYRANT GALLO. Conto recém-publicado na Verbo21, na coluna que tenho por lá, a Seara do Gallo. Portanto, quem quiser ler o resto da história, entre aqui: www.verbo21.com.br
Imagem: pintura de Gustav Klimt (1862-1918).

Um comentário:

Lidi disse...

Muito bom o conto, Mayrant. Gostei do diálogo com Álvaro de Campos e fiquei curiosa em ler Rubaiyat, de Omar Khayyam. Você tem? Visitarei mais vezes a Seara do Gallo. Abraço.