Num livro que estou lendo, Os fantasmas do século XX, do norte-americano Joe Hill, revelação da narrativa fantástica do seu país, há um conto que narra a história de um colecionador de últimos suspiros, entre os quais estão os de Edgar Allan Poe e Roadl Dahl, mestres do fantástico. Ele possui um museu onde os expõe ao público e, durante a visita de uma família interessada e também assustada, tem sua coleção questionada, em especial quanto ao fato de que só coleciona últimos suspiros de celebridades: "Todos os suspiros que o senhor tem aqui são de pessoas famosas?" O Dr. Alinger retruca e o faz com uma fala memorável: "De forma alguma. Eu já engarrafei últimos suspiros de universitários, funcionários públicos, críticos literários... uma profusão de gente sem importância". Algumas pessoas podem argumentar que o personagem, e talvez por extensão o autor, está desprezando aqueles tipos. Não é desprezo; é ironia. Há centenas, milhares e até milhões de funcionários públicos e universitários; até que algum se destaque por esse ou aquele motivo, todos são apenas "mais um na multidão", um punhado de gente numa sala ou num campus. Tal evidência apenas apoia a ideia de que também há críticos literários aos montes; que todo leitor é, a rigor, um crítico literário; e ainda mais hoje, que julga-se a arte pelo gosto pessoal ou pela escolha estética que se fez. Raramente pelo mérito da obra, pelos sentimentos que ela desperta, pelo abalo que ela estabelece no leitor, promovendo em sua capacidade de se emocionar e em sua inteligência outras convicções e uma percepção nova das coisas deste mundo e do que está acima dele: as estrelas ou este outro "céu", escuso e ainda mais misterioso, que é a mente humana. O Dr. Alinger parece dizer: "Há críticos literários? Para quê?" Eu diria que para ofender, para desdenhar, para destilar sua acidez e o seu desprezo. Para julgar o objeto artístico sempre em comparação com outro, jamais como um objeto em si, reunião de memória estética, experiência humana, aprendizado cultural e escolhas pessoais. Recentemente um "suposto crítico literário", fadado por vários motivos a ser um verme agonizante a jorrar seu suco infecto sobre textos alheios, ao comentar a criação de um poeta, acusou-o de não oferecer ao poema um desfecho condizente com o seu início, de fato, segundo ele, elevado e artístico. Ora, um poema não tem desfecho (salvo se for um poema narrativo), mas sim arremate; não são, como podem parecer, termos sinônimos. Desfechar é "tirar o fecho ou o selo", "abrir", "desvendar". Arrematar é quase uma ação inversa, ao menos na poesia, pois compreende um processo que envolve a um só tempo "conclusão" e "nó". E, além do mais, um poema se arremata com o que lhe cabe: de rítmico, de incidental (as palavras se combinando por si mesmas) e, obviamente, de técnico, o engenho poético, a formação propriamente dita do poeta. O poema é e será sempre uma linguagem que nasce e não permanece. Uma linguagem que jamais se repete. Uma linguagem que é, ao mesmo tempo, memória do sujeito, do idioma e da espécie. Uma linguagem de momento, única e irrepetível. Posta aqui, não pode ser trasladada para lá, pois não é um corpo; é um fluido, uma estação de passagem, um sopro quase divino, o último suspiro. Uma linguagem que, em última análise, não pode ser reutilizada. Reduzi-la a um simples meio funcional de temas e conteúdos é devolvê-la ao substrato comum da língua, de uso cotidiano, que somente quer comunicar uma mensagem e se fazer entender, e por isso seus usos se perdem na vastidão dos tempos. O poema é o ciframento possível de um estado de espírito, de um instante de iluminação. Se o leitor e o eu do poeta, durante a leitura, encontram-se ou "coincidem" nesse instante, o poema se justificou. Se não, que o leitor respeitavelmente passe a página. Entende-se por que Joe Hill, em seu conto, desfere uma ironia sutil contra os críticos literários: do alto do seu ponto de vista eles olham o mundo, e o que veem é a sua verdade, a sua própria face, distorcida, que lutam então por reparar.
Imagem: Einar Turkowski, do livro Estava escuro e estranhamente calmo (CosacNaify, 2009).
9 comentários:
É desse grau de argumento que sinto falta numa universidade. Depois do primeiro semestre, perdemos o norte e, daí sob os "cuidados" de mais "um" da muldidão, a literatura tornou-se mero exotismo e adorno para muitos, até algo abjeto e desprezível. O horror. Barthes, Eliot e Fautisno ainda soam incompletos sem um mediador dessa excelência para arrematar nossos ouvintes. Mas enfim. Aquele abraço.
Excelente texto, Mayrant. A literatura precisa ser preservada de tanto falatório mal humorado.
Mayrant, meu caro, brilhante. Todo o texto merece destaque, citação e recomendações. O que farei, sem dúvida. Sim, o poema como "estação de passagem" iluminou meu coração. Abr. (carlos)
Mayrant, que texto maravilhoso. Adorei-o. Do começo ao fim. Concordo com o anônimo que disse que ter você como professor, é um privilégio.
Sinto falta dessa verve inclusive em algumas revistas de literatura.
Essa critica de quem conhece os muitos lados do texto e se expressa como quem estivesse fazendo literatura, é coisa rara e preciosa. Ensina e instiga. Convida a leitura, forma pessoas.
Obrigada.
Marie.
Mayrant, que sorte daqueles que tiveram você como professor de Teoria da Literatura!
Maravilha de texto! Sempre visito seu blog. Grande abraço. Alessandra
Mayrant, morro de pena de quem tem como ganha-pão desdenhar, diminuir e catar defeitos nas obras alheias, fundamentando-se apenas no próprio gosto pessoal. Podiam usar suas energias para produzir algo do mesmo quinhão de onde acreditam se encontrar.
Bem que Rênate avisou. Esse texto está genial! Parabéns.
Abs.
Eu sou uma menina de sorte, tive Mayrant como o meu professor de Literatura. E as suas aulas me marcaram. Belíssimo texto, Mayrant. Um abraço.
Mayrant, você é puramente Letras. Sujeito raro de se encontrar nessa parafernália absurda que é o bojo da vida onde a literatura filtra. Excelente texto.
Grande abraço desse que é seu fã.
CV
Postar um comentário