"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 17 de janeiro de 2010

O CONTISTA CHRIS OFFUTT

O conto norte-americano, desde Stephen Crane, deixou o típico de lado e tornou-se universal. O. Henry, Jack London, Ernest Hemingway, Dorothy Parker, Sherwood Anderson, William Faulkner, Willa Cather, John Steinbeck, Conrad Aiken, Erskine Caldwell, John O’Hara, Flannery O’Connor, Dashiell Hammett, Carson McCullers, John Cheever, John Fante, James Salter, Paul Bowles, Breece D’J Pancake, Patricia Highsmith, Raymond Carver, Joyce Carol Oates e, mais recentemente, Chris Offutt, com o seu impressionante volume de apenas oito contos Além das montanhas.
Offutt reúne tudo o que se espera de um contista nato: fluência, trama envolvente, movimentação no tempo e no espaço, alternância de narração, descrição e diálogo, uma linguagem ao mesmo tempo funcional e poética, com rasgos filosóficos, representação relevante da vida e do mundo, reflexão e, às vezes, ciframento, desfechos condizentes ou conflitantes com a trama, atmosfera, mistério e ironia. Poucos foram os contistas que li nos dez últimos anos (e dos quais antes jamais ouvira falar) que me deixaram assim tão empolgado. Na verdade, só me lembro de dois: o sergipano Antônio Carlos Viana e a italiana Dacia Maraini, com o livro Meu marido (Berlendis & Vertecchia, 2001).
Dois contos se rivalizam como as obras-primas do livro de Offutt, que também é romancista e escreveu um livro de memórias: Além das montanhas, que dá título ao volume, e Moscou, no Idaho. Em ambos, a trama é só um pretexto para uma imersão maior, sobre a existência. O primeiro narra a história de Gerald, que é encarregado pelos quatro cunhados de ir buscar o outro irmão deles, Ory, que levou um tiro e está hospitalizado numa cidade distante. O segundo enfoca o dia-a-dia de dois ex-presidiários no único emprego que, ao sair da cadeia, encontraram: coveiros. Nos dois contos, e mais fortemente no segundo, prevalecem as reflexões sobre a vida a partir do seu fato mais corriqueiro: a morte. O diálogo entre os dois coveiros chega a um nível tal, que um deles começa a achar que a prisão era melhor, mais digna, o verdadeiro lar, o lugar onde se alcançam as lições definitivas: “A maior coisa que aprendi foi como conseguir que as pessoas me deixassem sozinho. Depois foi como dormir. Antes, nunca dormia bem; hoje, consigo dormir catorze horas seguidas.” E o outro retruca: “Só isso?” Não: “Também tive certeza absoluta de que gosto de mulheres”. Muitos são os trechos a destacar, como este, mais filosófico: “Ocorreu-lhe que o tempo não se move para a frente, como ele sempre pensara. São as pessoas que se movem pelo tempo”. Ou este outro, mais devastador: “Na prisão, descobrira que as leis eram feitas para proteger as pessoas que faziam as leis”.
De uma linhagem de escritores que não pretendem entreter, mas concentrar o leitor, fazê-lo evoluir do embotamento para a consciência, Offutt assim conclui seu relato: “Tilden se perguntou quando encontraria uma mulher, um trabalho de que gostasse, uma cidade onde quisesse ficar. Lá em cima, a Via Láctea fazia uma nevasca de estrelas no céu. Não havia nem uma cerca ou muro à vista”. Exílio existencial, liberdade de ação: destino. Eis a fórmula, da literatura para a vida.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eis o livro. Descrição empolgante. Tudo ali, no tocante ao manejo literário, verdadeiramente essencial.Posso levar uma vida, mas lerei boa parte desse seleto grupo. Aquele abraço.