"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A PROPÓSITO...

O HOMEM SOLITÁRIO

Ele estava na ilha desde o início do verão. Na casinha da colina instalara-se solitário e sem qualquer esperança de que chegasse alguém. Nas duas pensões próximas e no hotel sobre as pedras, já na curva da ilha, os hóspedes eram os mesmos dos anos anteriores, com algumas caras novas, porém.
Esta tarde ele fora à praia com um livro nas mãos e, debaixo do sombreiro, se pusera a ler. Com a aproximação do carnaval, poucos eram os banhistas, e especialmente naquele momento, meio de tarde, não havia nenhum sequer. Só uma família – dois casais idosos – tomava sol de costas para o mar, como num quadro de Hopper.
O que o desviou de sua leitura foi a grande sombra que passou sobre ele, sobre os dois casais e seguiu para o mar. Quando levantou os olhos, viu que o avião mergulhava de bico na água calma e brilhante da tarde. Toda a ação não lhe consumiu senão quinze segundos de sua vida, e o avião, imerso no mar, já não existia.
“Ei, ei, vocês viram?”, perguntou, correndo em direção aos casais de velhos.
“Não! Não! O quê?”, um deles disse.
“O avião!”
Não, ninguém vira, e ainda mais que o avião mergulhara em silêncio, como se os motores não mais funcionassem, e não fossem, aqueles velhos, tão surdos como montanhas.
“Avião? Não, não vi. Alguém viu?”
À ausência de resposta seguiu-se a reacomodação às espreguiçadeiras e ao sol, ao frescor agradável da tarde que findava e que nada mais poderia ferir.
Restou ao homem, parado à margem das ondas, olhar para o ponto do mar onde o avião desaparecera e imaginar, com horror, o que estaria acontecendo lá embaixo: o pânico dos passageiros, a dor da morte ao fim do último resíduo de oxigênio, o desespero por sair e se salvar...
E se ninguém na ilha parecia ter visto o avião, ele próprio – passado o assombro do primeiro momento – começou a se questionar se de fato o avistara, se o acidente, tão insólito, realmente acontecera. Se ele ao menos soubesse mergulhar...
Mas, à noite, com os pés na água, lá estava ele diante das ondas, incrédulo – sonho de todos os que dormiam à sua volta.


Miniconto que integra Nem mesmo os passarinhos tristes e que teve origem num sonho, em janeiro de 2009. Foto (Globo.com): aeronave similar ao avião da Air France que desapareceu ontem no espaço aéreo entre o Brasil e o Senegal.

2 comentários:

Hitch disse...

"À ausência de resposta seguiu-se a reacomodação às espreguiçadeiras e ao sol, ao frescor agradável da tarde que findava e que nada mais poderia ferir". Pago com horror e repugnância o tributo da passividade. Aquele abraço.

Lidi disse...

Muito bom o miniconto. Mayrant, estou ansiosa pela publicação deste teu livro. Um abraço.