Houve um tempo em que a história
de qualquer país era contada ou revista pela sucessão de reis, imperadores e
monarcas, mortos ou destronados depois de um acúmulo de intrigas e traições. A
história cotidiana, à margem do poder, era desprezada pelos historiadores. Foi
assim, sem exceção, em muitas partes do mundo. Já no século XX, a história pessoal
de um soldado da Primeira Guerra tem tanta importância quanto a própria guerra,
por constituir uma metonímia desta, uma parte genuína e representativa através
da qual pode se avaliar e compreender o todo do episódio bélico.
Não sei se foi esta a intenção de
Lima Trindade, com o seu O retrato
(P55, 2014), pois nunca sabemos ao certo qual é o propósito de um autor ao
começar a escrever uma história, nem se o resultado obtido retrata, fielmente,
aquele esboço através do qual a sua consciência, no início, o conduziu. O que
temos em mãos é o produto de sua criação e é, a partir dele, feita a leitura, que
devemos especular. E, na página 38, está dito, pela pena do narrador, um
simples servo do rei em sua propriedade de campo: “Ele fez da camaradagem o
mais importante capítulo da minha vida”. E também da existência de Portugal,
naquele instante.
Posto isto, posso afirmar, com
alguma convicção, que o foco narrativo de O
retrato sofre, qualquer que seja o ângulo de observação, um duplo e
constante desvio. Se a intenção era revisitar os eventos políticos que culminaram
com o assassinato de Dom Carlos I, o autor promove um deslocamento e os refere
utilizando-se do drama pessoal do rei, afeiçoado de camaradagem por seu servo
António Dias de Oliveira, factótum de sua propriedade de campo, e em companhia
de quem saía periodicamente para caçar. Se, no entanto, pensou o autor em
trazer à tona os mistérios sexuais do rei, não deixou de pontuá-los com
referências iluminadoras do decurso político e sugerir, indiretamente, a responsabilidade
daquele por tudo o que estava acontecendo, uma vez que Dom Carlos I resvala,
com naturalidade, para o idílio e subestima o contexto político, mais premente
e de consequências mais graves. E esta benevolência é, talvez, o motivo de sua
desgraça.
Portanto, qual é o assunto central
de O retrato? O amor único e
grandioso que qualquer época não compreende e despreza. E que, ironicamente, só
chegou até nós pelo depoimento pessoal do narrador, um simples servo do rei e
homem vagamente instruído pelos livros. Mas alguém pode me inquerir, exigindo
que eu aponte o trecho da narrativa em que isto está dito, sem meias-tintas.
Ora, no não-dito, naquilo que, de fato, faz da literatura o que ela é, metáfora
do mundo, o “outro texto”, que não é o histórico, nem o jornalístico, muito
menos o científico; que não é senão o que se pode aferir e afirmar ou reafirmar
a cada leitura. O atributo que a inscreve sempre nova na eternidade.
Com ecos de André Gide e Oscar Wilde,
menos de Henry James, como o autor quis sugerir com o subtítulo “Um pouco de
Henry James não faz mal a ninguém”, que só vejo se justificar pelo
enquadramento da narrativa, com o longo prólogo e o rápido epílogo, O retrato é também um elogio ao que a
canadense Annie Proulx denominou, indiretamente e sem panfleto, o amor
universal. Quem a leu sabe do que estou falando e há de me conceder alguma
razão.
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