"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 19 de março de 2014

LEITURAS, 46: O RETRATO

Houve um tempo em que a história de qualquer país era contada ou revista pela sucessão de reis, imperadores e monarcas, mortos ou destronados depois de um acúmulo de intrigas e traições. A história cotidiana, à margem do poder, era desprezada pelos historiadores. Foi assim, sem exceção, em muitas partes do mundo. Já no século XX, a história pessoal de um soldado da Primeira Guerra tem tanta importância quanto a própria guerra, por constituir uma metonímia desta, uma parte genuína e representativa através da qual pode se avaliar e compreender o todo do episódio bélico.
 
Não sei se foi esta a intenção de Lima Trindade, com o seu O retrato (P55, 2014), pois nunca sabemos ao certo qual é o propósito de um autor ao começar a escrever uma história, nem se o resultado obtido retrata, fielmente, aquele esboço através do qual a sua consciência, no início, o conduziu. O que temos em mãos é o produto de sua criação e é, a partir dele, feita a leitura, que devemos especular. E, na página 38, está dito, pela pena do narrador, um simples servo do rei em sua propriedade de campo: “Ele fez da camaradagem o mais importante capítulo da minha vida”. E também da existência de Portugal, naquele instante.
 
Posto isto, posso afirmar, com alguma convicção, que o foco narrativo de O retrato sofre, qualquer que seja o ângulo de observação, um duplo e constante desvio. Se a intenção era revisitar os eventos políticos que culminaram com o assassinato de Dom Carlos I, o autor promove um deslocamento e os refere utilizando-se do drama pessoal do rei, afeiçoado de camaradagem por seu servo António Dias de Oliveira, factótum de sua propriedade de campo, e em companhia de quem saía periodicamente para caçar. Se, no entanto, pensou o autor em trazer à tona os mistérios sexuais do rei, não deixou de pontuá-los com referências iluminadoras do decurso político e sugerir, indiretamente, a responsabilidade daquele por tudo o que estava acontecendo, uma vez que Dom Carlos I resvala, com naturalidade, para o idílio e subestima o contexto político, mais premente e de consequências mais graves. E esta benevolência é, talvez, o motivo de sua desgraça.
 
Portanto, qual é o assunto central de O retrato? O amor único e grandioso que qualquer época não compreende e despreza. E que, ironicamente, só chegou até nós pelo depoimento pessoal do narrador, um simples servo do rei e homem vagamente instruído pelos livros. Mas alguém pode me inquerir, exigindo que eu aponte o trecho da narrativa em que isto está dito, sem meias-tintas. Ora, no não-dito, naquilo que, de fato, faz da literatura o que ela é, metáfora do mundo, o “outro texto”, que não é o histórico, nem o jornalístico, muito menos o científico; que não é senão o que se pode aferir e afirmar ou reafirmar a cada leitura. O atributo que a inscreve sempre nova na eternidade.
Com ecos de André Gide e Oscar Wilde, menos de Henry James, como o autor quis sugerir com o subtítulo “Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém”, que só vejo se justificar pelo enquadramento da narrativa, com o longo prólogo e o rápido epílogo, O retrato é também um elogio ao que a canadense Annie Proulx denominou, indiretamente e sem panfleto, o amor universal. Quem a leu sabe do que estou falando e há de me conceder alguma razão.

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