"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 28 de novembro de 2009

A DÍVIDA

– A QUE horas o senhor volta, doutor?
O homem com quem meu pai falava, havia alguns meses, era um estrangeiro. Um engenheiro estrangeiro. Seu nome, se não estou enganado – e é provável que esteja – era Clyde ou Charles – qualquer coisa assim.
Meu pai trabalhara para ele durante toda a primavera e boa parte do verão. Agora ele devia a meu pai uma boa soma em dinheiro e não queria pagar. Vinha se esquivando de várias formas. Numa hora dizia estar ocupado, impossibilitado de atender meu pai; noutra, que tinha esquecido o talão de cheques, ou então que seus recursos no banco estavam bloqueados, ou que algum caso de doença na família o obrigava a se ausentar do Rio...
O outono já ia pelo meio, e meu pai liso atrás do sujeito. E comigo a tiracolo: me arrastando com ele em quase todas as vezes que o procurava, pois eu não possuía mãe, não estudava, não tinha ninguém que cuidasse de mim à ausência de meu pai...
Curvado contra a janela do carro do sujeito, meu pai se ergueu e o deixou livre para partir.
Havia uma loura ao seu lado, dessas que todo homem sonha em ter na cama ao menos por uma noite ou mesmo uma hora, mas sem que pague por isso: por vontade dela, desejo mesmo, consentimento. Alguma Gretchen Mol atual, vocês sabem, aquela atriz que parece deslocada no tempo, de rosto redondo e maçãs pronunciadas, uma mulher dos anos da Depressão americana – ou de uma Europa ocupada – perdida em nossa época.
Antes de dar a partida, o cara informou que voltaria à noite. Que meu pai retornasse então, e acertariam a dívida, sem falta. Sem falta... Como podíamos acreditar? Como acreditar num homem para quem palavras não passavam de meios de desculpas? Mas meu pai acreditou, ainda assim. Acreditaria sempre, confiava nos homens, em todos os homens, até nos mais baixos, sem caráter, sem escrúpulos, aqueles que gritavam quando por direito só lhes cabia o silêncio.


Trecho inicial da novela de minha autoria que venceu, esta semana, o prêmio Literatura Para Todos, do MEC.

Imagem: Vaivém, de A. Café-Gallo.

12 comentários:

Alaor Ignácio disse...

Salve, Mayrant.

De fato, os neoleitores terão um prato cheio! O ruim da coisa é que eu fiquei ansioso por conhecer o restante da história. Espero que pelo menos um, dos 300 mil exemplares, venha parar aqui, na cabeceira de minha cama.
Um grande abraço e até Belém.
Alaor Ignácio

Lidi disse...

"Acreditaria sempre, confiava nos homens, em todos os homens, até nos mais baixos, sem caráter, sem escrúpulos, aqueles que gritavam quando por direito só lhes cabia o silêncio."

Muito bom, mesmo! Ficaria surpresa se esse prêmio não fosse teu. Parabéns, Mayrant. Você merece! Um abraço.

aeronauta disse...

Sinto-me uma pessoa privilegiada por já ter lido o livro - excelente, é bom ressaltar. Agradeço-lhe a confiança. E parabéns, mais uma vez.

Tom Correia disse...

300 mil! Grande!

karina rabinovitz disse...

e só neste trecho me arrepiei. o parágrafo final é tão forte!

gostei também da imagem vaivém.

Hitch disse...

Por Deus, que inveja da aeronauta(rs). Brincadeiras à parte, só me resta integrar ao coro, este, contrariando o velho Nelson Rodrigues, sabiamente unânime. Aquele abraço.

Georgio Rios disse...

O treco convida a leitura,sempre boa.
Parabéns, e vamos esperando para ler o grande Livro, do qual degustamos uma bela págia!!!

Ana Cecília disse...

Também eu fiquei na expectativa do livro!
Parabéns, Mayrant, fiquei feliz pela notícia da merecida premiação.
Grande abraço,
Ana Cecília

Flamarion Silva disse...

Que legal, Mayrant! Acredito que a novela seja Moinhos (aquela que você me mostrou na FPC).
E que tiragem extraordinária!
Pela qualidade dos seus textos, é certo que o prêmio é mais que merecido.
Parabéns!
Meu abraço.

Gerana Damulakis disse...

Parabéns! Desde logo, curiosíssima para ler.

Marcela Soares disse...

Mayrant, parabéns pelo prêmio. Merecidíssimo, por sinal. Adorei o trecho. Estou curiosa para conferir o restante. Beijos.

Ianice disse...

Parabéns, Mayrant!!
Aguardarei ansiosa a leitura desse livro. Beijos!!