"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

CONTO NA VERBO 21

PORRA, SAMUEL!

Samuel estava atrasado. Passava das nove horas de uma manhã quente e agitada. Desviar-se das pessoas não era a sua única preocupação. Desde que o primeiro galo cantara que ele despertara e não conseguira mais dormir.
Quando dobrou a curva, avistou o Gordo dentro do carro, que também era grande, gordo, um desses veículos utilitários de cor preta ou marrom que os homens fracos dirigem para parecerem fortes.
Perto, encostadas à porta da loja, estavam as três garotas. A quarta vendedora só chegaria às dez horas. Ela lhe pedira isso no fim do expediente de sábado, dizendo que tinha médico segunda-feira às oito, e a chegar atrasada achava mais correto pedir para chegar mais tarde.
— Tudo bem, Lu, chegue às dez horas.
Samuel a chamava assim — Lu — porque o nome dela era Luciana, e queria também chamá-la assim em outro lugar, e era talvez por isso que a chamava assim, para que ela se tocasse e baixasse a guarda. Sempre o surpreendia que as mulheres ficassem tanto na defensiva. Como a espécie conseguira sobreviver?
— Estupro, graças ao estupro — dizia Isaac.

— Porra, Samuel! — o Gordo disse, quando ele se aproximou, deu bom-dia a todos e começou a abrir a porta, a enrolá-la sobre si mesma como uma esteira que se guarda para o próximo verão.
— Continue assim, que você vai se foder! Comigo é dessa forma!
Era o Gordo de novo, latindo. Não valia a pena retrucar. Dizer que se atrasara porque sua namorada não estava em casa, não dormira em casa e não atendia o telefone — prova de que passara a noite em algum lugar com alguém. Dizer que vinha muito mal pela rua, sem tirá-la do pensamento, preocupado, sem nem ter pensamento: esquecido da loja, de que era o gerente, tinha a chave da porta, esquecido até de Lu...
— Tá — ele disse, e depois: — Me chame de Sam, não gosto que me chamem de Samuel.
— Seu porra! Vou te tirar desta função e botar uma das garotas!E o Gordo ligou o carro, espancou o motor, avançou o sinal. Uma mulher teve que dar dois passos atrás para não ser atropelada. Outra chegou a ser tocada de leve pelo para-lama. Um homem mais corajoso xingou o Gordo. O sinal todo o odiou.


A continuação está na VERBO 21, numa coluna mensal que o Lima Trindade gentilmente me ofereceu na revista.

Imagem: cartaz do filme Gone (2007), de Ringan Ledwidge, mais uma instigante produção do original cinema australiano.

2 comentários:

Hitch disse...

Muito que bem, acertamos! O filme prometia mesmo. E sobre a coluna, uma seara a desbravar. No mais, aquele abraço.

Georgio Rios disse...

Lí o conto na VErbo, nem preciso dizer que está implacável.E Já estou ansioso pelo próximo.Um grande abraço!!!