"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 17 de abril de 2013

CIDADE SINGULAR | ENTRADA


O texto abaixo compreende a seção 11 do conto De ratos e homens, que está no livro Cidade singular (Kalango, 2013), a ser lançado em 29 de abril, no restaurante Casa de Teresa, Rio Vermelho, às 19 horas. Comecei a escrevê-lo em 1995, e a primeira pessoa que o leu foi Josélia Aguiar, jornalista em São Paulo, e que foi minha colega no marketing do Banco Econômico. Apesar dos elogios que ela fez, o conto em si jamais me contentou e, ao longo dos anos, o trabalhei incansavelmente. A última versão é, a rigor, de dezembro de 2011, mas não hesitei, diante das provas do livro, no mês passado, em muda-lo mais uma vez. Espero que o leitor o aprecie e, depois, o leia na íntegra. Josélia Aguiar foi a primeira pessoa que me incentivou a publicar um texto, ao levar meu conto Bicicletas para o extinto caderno A Tarde Cultural, em 1995 ou 1996. E, para a minha surpresa, num dos eventos literários a que compareci em 2012, um senhor se aproximou de mim, me cumprimentou e disse que lera meu conto Bicicletas e ainda o mantinha guardado. Este foi um dos maiores elogios que já recebi.
                                               
11

Não encontrei meu pai nem meus irmãos. Percorri todo o anzol de areia e não os vi. Também já era tarde, quase meio-dia. Pensei que talvez já tivessem voltado, estivessem em casa, com minha mãe, prontos para almoçar, e que eu os atrasava. Mesmo assim, não contive o desejo de me prolongar um pouco mais em meio àqueles biquínis minúsculos. Perto da Praia Negra, surgiram os primeiros seios nus. Eram miúdos e belos, de uma tonalidade mais clara e macia, que os evidenciava já à distância. Causou-me surpresa o fato de que os poucos homens que ali estavam não os olhassem. Ou não representavam um gosto, um gozo? Para mim, que pouco os tinha visto, eram frutos do paraíso.
Ao fim de mais ou menos uma hora, eu tinha sede e, fatigado, com o pensamento meio turvo de tanto ver seios nus e procurar, sob os finos tecidos úmidos de suor e sal, uma intimidade, decidi ir embora.
Mal deixei para trás o Iate Clube e entrei pelo extenso trecho de terra que levava à nossa casa, ouvi um pesado ruído de motor, que foi crescendo e logo me ultrapassou. Os dois únicos caminhões do Corpo de Bombeiros do município me deixaram para trás, sufocado numa nuvem de poeira e incompreensão. Iam sem sirenes, e isso na hora me intrigou. Depois, em conversa com meu pai, ele esclareceu que as sirenes são limpa-trilhos, não colônia pós-banho.
Era impossível seguir os caminhões. Por isso, me contentei em tentar identificar, à frente deles, o local do incêndio ― se é que era um incêndio. Podia não ser. Crianças desapareciam em poços inativos, animais eram atropelados, trens abalroavam carroças ou carros no cruzamento que conduzia ao cemitério. Eram tragédias comuns, estas. Até então eu convivera com elas naturalmente. Ainda hoje acontecem, e quase com a mesma frequência dos afogamentos de verão, que não são poucos. Lus é uma luz que ofusca e nos empurra para a noite.
Só quando avistei o fio de fumaça no horizonte, foi que me dei conta de que do fundo de um dos caminhões o bombeiro Isaías me olhara de um jeito estranho, pesaroso, quase dócil. A fumaça preta subia do conjunto de casas de telhado simples, brancas, amarelas, verdes ou azuis, a minha no meio. (Cidade singular, p. 117-118)

Publicado originalmente na Verbo 21, em março de 2013.

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