"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 2 de outubro de 2010

LEITURAS, 1: A SEGUNDA SOMBRA

Se há um aspecto da literatura e do cinema brasileiros que abomino é o que chamo "minuto panfleto". Aquele momento em que a narrativa estaca e os personagens se põem a ensinar, protestar, recomendar, discursar: "use camisinha", "não trate assim as pessoas da terceira idade", "faça valer seus direitos de cidadão: vote" etc. Arre! Literatura modo de usar, cinema quadro do Fantástico. As séries de tevê e as telenovelas também estão cheias disso. Portanto, quando leio algo em que uma análise profunda do nosso país é feita sem que a literatura precise abrir mão de suas características de literariedade e ciframento fico feliz. É o caso deste miniconto de CARLOS BARBOSA:

LEMBRANÇAS DE VIAGEM

Ele não se lembra bem como aconteceu.
Perdeu o controle do carro e saiu da estrada.
Assim como quem sobe a calçada para cumprimentar pessoas, o carro e ele tocaram árvores, uma depois da outra, até se quedarem, cada qual em seu cantinho de mato.
Não tardou muito e os outros surgiram no local do acidente. Primeiro, curiosos; depois, sorrateiros.
Ele os viu, um a um, revirarem o carro e levarem seus pertences. Assistiu depenarem seu próprio corpo ― não podia se mexer, não podia falar. Depois o deixaram lá, gaveta revirada, e foram cuidar de suas vidas.
Disso ele se lembra bem.
(In: A segunda sombra. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010)

Está tudo ali. A formação e o caráter de um país expostos num preto-e-branco sem concessões: a miséria, a falta de solidariedade, a impiedade, o desrespeito ao outro; a solidão profunda do homem diante da adversidade e da indiferença alheia; a dor. 106 palavras que dizem tudo o que somos.


Imagem: a hipnótica arte fotográfica de Chris Jordan.

Um comentário:

Anônimo disse...

106 palavras que calam fundo. Continue a enviar mais sinais de vida. Aquele abraço.