"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

VÁ E VEJA, 8: RITOS DE PASSAGEM

Se há um gênero de filme em que os americanos são insuperáveis é a narrativa de rito de passagem da adolescência para a idade adulta. Podemos arrolar facilmente uns dez filmes importantes no gênero produzidos nos EUA. Mas três se destacam: Juventude transviada (Rebel whitout a cause, 1955), de Nicholas Ray, Loucuras de verão (American graffiti, 1973), de George Lucas, e O selvagem da motocicleta (Rumble fish, 1983), de Francis Ford Coppola.

Se o tom do primeiro é de rebeldia e tédio, o do segundo é de indecisão e humor, e o do terceiro, de violência e desorientação. Nos três, porém, os jovens estão transitando: já não são mais crianças, mas ainda não são adultos. Falta algo, talvez segurança, certeza ou simplesmente a capacidade de conciliar a diferença individual com o padrão coletivo. No filme de Ray a fuga da existência vazia e sem horizontes se dá através das noites de farra e pegas automobilísticos, até que um dos participantes morre, e o sonho muda de rumo, para convergir noutra morte, ainda mais estúpida, porque cunhada no erro. No início do filme, num ato de rebeldia da rebeldia o personagem de James Dean bebe leite, numa cena que se tornou célebre e que, em geral, o público não compreendeu. O desfecho, preparado com rigor ao longo da narrativa, parece afirmar que crescer, tornar-se adulto, é o correlato de acordar para a própria vida.

No filme de Lucas, o dilema existencial se resolve numa única noite em que os personagens transitam insones pelas ruas de uma pequena cidade interiorana. Mais uma vez, o pega de automóveis é o emblema de uma transmutação, mas, embora haja ainda um acidente, ninguém morre: o desastre, citação clara ao filme de Ray, serve como um baque, que desperta os personagens do sonho acordado de uma noite inteira, mas sem feri-los gravemente: a vida é outra coisa, e sérias decisões precisam ser tomadas, só isso.

No filme de Coppola, num preto e branco comovente, que a música quase abstrata intensifica ao máximo, tornando-o onírico, os personagens vivem à sombra do Motoqueiro, espécie de herói da juventude da cidade. Forte, bom de briga, inteligente, sensível, capaz de se dar bem em tudo, ele só não é exitoso consigo mesmo: vive em crise e despreza a influência que exerce sobre os mais jovens. Enquanto todos querem imitá-lo, especialmente seu irmão, ser quem ele é, o Motoqueiro, de sua parte, quer ser outra pessoa. Não há mais pegas, nem acidentes de automóveis: o emblema de mudança é mais sutil e poético e, não sem ironia, conduz a um final ambíguo, entre a dor e a redenção. O Motoqueiro reina e reinará sempre, apesar de tudo. Antes pelo seu heroísmo, pelos seus atos, agora pelo que fizeram com ele, lição que seu irmão Rusty James absorve e com a qual, finalmente, cresce.

Três belos filmes sobre a juventude, três eficientes ritos de passagem, três olhares sobre uma época que ninguém esquece e que, perdida, jamais será recuperada, a não ser pela memória, que é o que resta, até que chegue a morte.

4 comentários:

Bípede Falante disse...

O Selvagem da Motocicleta é mesmo um filme único, um marco na juventude de cada um, ou de quase cada um, porque tem gente que parece nunca ter sido jovem.
bjs.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

O filme de Coppola me é especialmente caro. Revejo-o sempre, num misto comovedor de dor e encantamento. Ray é maravilhoso, Lucas é a surpresa, pois não imaginara seu apreço e entusiasmo pelo filme (conhece-o apenas de referência e de cenas soltas, exibidas aqui e ali na tevê aberta). Talvez um quarto filme se some a essa fina seleta: "Jovem, loucos e rebeldes" (1993), de Richard Linklater. Parece (e é)debitário dos três longas mencionados. Arrola rebeldia, humor, violência (num grau menor, verdade), desorientação, e por fim, indecisões, de que a vida adulta é outra coisa, e mais feia. É isso. No mais, aquele abraço.

Lidi disse...

Dicas anotadas. As tuas e a do Anônimo. Abraço aos dois.