"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

terça-feira, 28 de julho de 2009

CAPA E MIOLO

"A contragosto acabou por ceder à tentação de espiar pela fechadura e, quase de joelhos, apoiou a mão na moldura da porta.
A claridade do quarto era avermelhada, como que protegida por um abajur de seda. A cama ficava à direita, bem alta, e na borda estava Louise, de joelhos afastados, exatamente na pose da mulher que contaminara Élie, enquanto Michel, de pé, penetrava-a com longos movimentos ritmados.
Via-os a ambos de perfil. A moça, talvez por causa da iluminação, estava muito pálida, lábios da mesma cor da pele, narinas contraídas, olhos fechados. Seu rosto não expressava nada. De tão imóvel parecia morta.
Michel não falava, não sorria e, de onde se achava, Élie ouvia-lhe a respiração em sintonia com os movimentos.
Só no fim Louise sofreu dois ou três estremecimentos nervosos. Seu rosto crispou-se sem que ele soubesse se de dor ou prazer; o homem ficou um instante imóvel, recuou um passo, teve um risinho seco e estendeu-lhe a mão para ajudá-la a levantar-se."

Poucos livros apresentam uma capa tão em sintonia com uma sequência interna como este de Simenon. De autoria de Victor Burton, principal ou talvez único capista da Nova Fronteira da época, reflete na representação do orifício de uma fechadura tanto uma iniciação sexual que foi dolorosa quanto uma descoberta que mudará para sempre a vida daquele que vê, o protagonista. Melhor seria se Élie não tivesse visto nada, pois, de joelhos como em reverência, ele descobre ao mesmo tempo o mistério, a beleza, o sonho e o horror. E tomará a decisão das decisões: matar. Crime impune é um dos melhores romances não-policiais de Simenon, obras nas quais ele reúne seu estilo inconfundível, técnica impecável, uma arte que não se exibe como tal e o assunto de sua predileção, recorrente: as existências vazias de sentido.

5 comentários:

Hitch disse...

Uma simbiose harmônica e eterna. Um romance que pede para ser lido. Aquele abraço.

Bárbara disse...

Concordo com Hitch.

Texto e imagem consonantes, a ponto de aguçar os sentidos.
Uma abraço, Mayrant!

Unknown disse...

Eu fico louca quando venho aqui. Da minha lista de cinco livros que eu quero ler logo, dois foram indicações de Mayrant. "Leitor compulsivo" essa doença pega?

dade amorim disse...

Sou fã de Simenon há décadas. Mesmo assim, cada livro dele ainda me surpreende, porque é impossível parar de ler até chegar ao fim.
Abraço grande.

marcelo grejio cajui disse...

Boa Noite Mayrant Gallo.
procurei pelo seu e-mail mas não encontrei. queria trocar umas idéias sobre meu livro que esta pronto e pretendo lançar em breve. o meu é marcelocajui@hotmail.com
abraço