"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

LITERATURA E QUADRINHOS

O drama de Capitu e Bentinho.
Adaptações de obras literárias para os quadrinhos geralmente incorrem num grave erro: a didatização. Ou então revelam o pendor do roteirista para a preguiça, evidenciada na desistência da história, durante a transposição de um gênero para o outro: comumente os roteiristas começam com todo vigor, atenuam seu trabalho no decurso e, por fim, falham no arremate. Nos dois casos, o resultado é uma adaptação que, longe de expressar a obra na sua essência, a dilui, não satisfazendo o leitor e, muitas vezes, afastando-o de conhecê-la na forma literária. O melhor exemplo atual talvez seja Dom Casmurro (Nemo, 2011), de Machado de Assis, adaptado por Wellington Srbek e José Aguiar. Realmente uma adaptação pífia, se pensarmos no texto e na tensão original da obra, mas cujos desenhos, ágeis e expressivos, num claro-escuro de traços geométricos, salvam-na do fracasso absoluto. E chegamos a apreciar a Capitu risonha e maliciosa, de olhar profundo, como qualquer adolescente convicta de sua beleza e do poder de sua sedução.

Conto fantástico francês em HQ.
Raros são os gibis que, de fato, partindo de uma obra literária, se consagram como a expressão autônoma de uma história consagrada. Mesmo assim, há bons exemplos atualmente, como: O cabeleira, Clara dos Anjos, A cartomante, O estrangeiro, Pequeno pirata (conto do francês Pierre Mac Orlan, inédito no Brasil) e O coração nas trevas, entre outros. Podemos afirmar, inclusive, que este é um momento de excelentes adaptações literárias para os quadrinhos. Excetuando-se talvez a primeira das obras aqui mencionadas, cujo enredo favorece um desenvolvimento mais ágil, as demais são, efetivamente, de difícil transposição, mas seus autores lograram êxito e chegaram a um resultado ao qual não devemos poupar elogios.

Fidelidade literária a Lima Barreto.
Vejamos Clara dos Anjos (Companhia das Letras, 2011), de Lelis e Wander Antunes. A trama é fiel ao romance de Lima Barreto, a arte favorece a variação de registros imagéticos, num colorido ora suave ora imerso no percurso agressivo do entrecho, e os personagens são "pintados" conforme seu íntimo, de acordo com a velha máxima de que somos fisicamente o reflexo de como agimos em sociedade. Neste sentido, Cassi Jones, o vilão da história, astuto e galanteador, malandro e  predador de mocinhas indefesas, não podia ter outra fisionomia senão a de uma raposa, arrematada por um nariz adunco, de ave de rapina. Clara dos Anjos, por sua vez, a mais inocente vítima de sua ação predatória, é retratada como uma jovem e bela negra, mas sem exageros. Aliás, nada é exagerado nesta adaptação do escritor carioca para os quadrinhos. E era uma história que em tudo favorecia o panfleto, a reparação. Mas ficou o que era, originalmente: um relato duro, tenso, realista e inevitável, quase como uma tragédia grega, muito embora não haja, ao fim, nenhum banho de sangue. Mas não há como não pensar que a mocinha Clara dos Anjos morreu um pouco ou de todo para a continuidade de sua existência, num século XIX de estigmas indeléveis, quando afirma, na última página: "Nós não somos nada nesta vida". Não mesmo.

Uma adaptação à altura da proposta literária de Lima Barreto, que, consciente de quem era e do mundo que vibrava à sua volta, não fazia concessões.

Um comentário:

Carlos Barbosa disse...

Acabo de ver que vc citou "O estrangeiro" no texto. Ignore o comentário anterior. Grande abraço, (carlos barbosa)