"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 28 de junho de 2014

VÁ E VEJA, 22: HELENO

Heleno de Freitas talvez tenha sido, no Brasil, o primeiro grande jogador de futebol a se afundar em problemas e a eles sucumbir. Foi ídolo no Botafogo, jogou no Boca Juniors, passou pelo Vasco da Gama, por um clube obscuro da Colômbia e, de forma conclusiva, pelo América (RJ), clube que ele desprezava. Dotado de temperamento difícil, culpava os companheiros pelas derrotas, atracava-se com eles, discutia com os técnicos e, colérico, depredava os vestiários. Também se envolveu com diversas mulheres, tornou-se presa de drogas lícitas e ilícitas, contraiu sífilis e acabou morrendo jovem e louco. Tudo isso, com o páthos exato para nos sensibilizar, está expresso no ótimo longa-metragem brasileiro Heleno (2012), de José Henrique Fonseca.

Há muitos anos que deixei de admirar o cinema brasileiro, mais afeito hoje às pressões do mercado e às imposições multiculturais, e conto nos dedos os filmes que, de fato, podemos chamar de obra de arte cinematográfica. Este é um deles, a começar pela trama, que, baseada num assunto trivial (a biografia de um problemático jogador de futebol), tinha tudo para fracassar. Mas os realizadores (roteiristas, diretor e fotógrafo) foram muito felizes no estabelecimento de uma estrutura que alterna os dias de glória do craque com seus momentos terminais numa clínica psiquiátrica. Entremeando os dois tempos, surgem as recordações idealizadas do jogador, oriundas de seus delírios químicos. Neste sentido, é como se assistíssemos a uma exposição dialética: o êxito no futebol (tese), a decadência pessoal (antítese) e o sonho substitutivo (síntese). Incapaz de se repetir perante o tempo implacável, que o engolfa, Heleno se refugia numa realidade onírica, na qual prevalece uma existência ideal, livre de percalços.

Outro aspecto a se ressaltar é a fotografia, em p&b, que permite ao filme, a um só tempo, remontar cenário e época, dos quais só restam as matérias jornalísticas e um punhado de fotografias, e conceber, sem impacto para a percepção do espectador, uma textura de imagem que reúne, eficientemente, o material de arquivo com as sequências propostas para o desenvolvimento do entrecho. O resultado é um filme fluido, sem pretensão biográfica, que abdica do futebol em favor do âmbito extracampo e faz de Heleno de Freitas uma vítima de si mesmo e um protótipo humano de todos nós, que mal estamos preparados para o sucesso e não sabemos lidar com os fracassos. 

Culpar o outro, diminuindo-o ou achincalhando-o, é o escape mais fácil e ao qual não nos furtamos. Assim também era Heleno de Freitas: o culpado era o lateral supostamente onanista ou mesmo todo o time, formado por pernas de pau (salvo ele, Heleno). De onde ele estava, na sua grandeza e talento incomparáveis, o mundo era pequeno, estranho e inimigo. E assim foi até o fim.  

Aproveite a Copa do Mundo e assista a Heleno. É uma representação perfeita deste frenesi mundial em torno da bola ou, mais provavelmente, o seu contraponto, se concordarmos que aquilo que nos mostram é só uma face da moeda. Iluminada e furta-cor.

2 comentários:

Orlando Freire Junior disse...

Filme bonito e que tem todos esses trunfos que você aponta. Creio que a figura de Heleno, brutal em campo e sofisticada fora dele não tem paralelo na história do futebol.

Orlando Freire Junior disse...

Falta vírgula no comentário acima (acho que estou virando Aldrovando Cantagalo.