"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A PONTE

Qualquer decepção de leitura tem uma história e quase sempre esta não pode ser remontada. Contrate o melhor detetive, que ele ainda assim não será capaz de dizer, ao fim, por que motivo você não gostou de Dom Casmurro ou odiou Fogo morto. A mesma regra se aplica a um filme ou à recepção de um quadro ou de uma música. Algo que nos aconteceu ou aquilo que jamais nos aconteceu talvez explicassem aquele vazio, ao virarmos a última página de um romance ou ouvirmos os primeiros acordes de uma canção. Mas como encontrá-los? Não somos capazes de ir tão longe dentro de nós mesmos... Infelizmente. Ou felizmente, talvez. André Gide disse, indiretamente, que a leitura – toda leitura e, por conseguinte, toda recepção em arte – é um ato de sair: se não de nós mesmos, do que nos aprisiona. Terminamos um romance ou um conto com a sensação de que fomos ultrapassados ou reduzidos. Ou de que a vida não vale o ar que respiramos ou, pelo contrário, que vale qualquer esforço, o mais absurdo dos sonhos de um sonhador ainda mais absurdo que os sonhos absurdos que ele sonha... Que a vida é ironia e dor e qualquer outra coisa. A nossa impressão (boa ou má) de uma obra de arte – pictórica, verbal ou qualquer outra – pode ser debitária de um único dia de nossas vidas: um dia vivido ou sonhado e sem o qual eu não teria alcançado o fulgor deste momento em que leio um poema ou aprecio um Matisse. E cada dia é como a seção de uma ponte sem a qual não se pode chegar à seção seguinte. Portanto, a nossa vida lê a arte, que, por sua vez, lê a nossa vida e nos oferece a sensação ou de perda ou de acréscimo. O filme que eu admiro guarda um pedaço de mim sem que nem eu mesmo o saiba. Mas eu estou lá, em Acossado: na traidora Patrícia, no aventureiro Michel.

Imagem: cartaz de Acossado (1959), de Jean-Luc Godard.

3 comentários:

Anônimo disse...

Desencontros com a arte (em referência ao seu já celébre artigo)pontuam que o tal gosto pessoal sempre é subjetivo, como um rio copioso. Ler, seja qualquer obra de arte, será sempre uma experiência intensa, cuja extensão dos efeitos jamais ganhará uma medida satisfatória. Infelizmente, para muitos, ler só deveria ter uma "aplicabilidade imediata". E claro que isso não vale para Machado, Zé Lins e Godard. Aquele abraço. T

Anônimo disse...

LIVRO - O Beijo do Otário, de Alan Parker.
FILME - Morte em Veneza, de Visconti
PINTURA - A Metamorfose de Narciso, de Dali

Três preferências pensadas rápido

Silvestre Gavinha disse...

Muito legal esse texto Mayrant. Ou mais esse.
Esse "jogo"é genial.
Hoje revi dois filmes: Sideways e Forest Gump. Acho que as vezes essa seção da ponte, ou esse dia, que faz toda a diferença, pode aparecer depois.
E quando revemos o filme, já não é o mesmo.
Nem mesmo nós.
Marie