A grande assertiva do filme O lutador, de Darren Aronofsky, é a de que só existe uma luta e, conseqüentemente, um único adversário: a vida.
Mickey Rourke é Randy Robinson, o Carneiro, lutador de luta livre, aquela modalidade de esporte que visa mais ao espetáculo (através de combates simulados e cheios de presepadas) que à verdadeira competição. No Brasil, ficou muito conhecida, nos anos 1960, como telequete e consagrou seu príncipe: Ted Boy Marino, ex-integrante do grupo Os trapalhões.
Depois de um terrível combate (cuja simulação é das mais esdrúxulas, repleta de sangue, vidro e metal), Randy tem um infarto. Recuperado, mas assombrado com a recomendação médica de que não pode mais lutar profissionalmente, o Carneiro decide se aposentar.
É então que ele descobre que o seu maior adversário “não pode ser medido nem pesado”: vai combater com a filha lésbica que já não o considera seu pai; vai ser proibido de ter uma existência normal com Pam, porque esta, em sua condição de stripper, não pode se relacionar com os clientes; vai descobrir que há mais golpes a receber por trás do balcão de frios de um supermercado do que no ringue...
Seco, duro, realista, melancólico e reflexivo, O lutador desloca para o cinema − e para um contexto específico de truculência − uma idéia que há muitas décadas é explorada pelos ficcionistas norte-americanos e seus epígonos: Ernest Hemingway, Charles Bukowski e o francês Jean-Claude Izzo, em algum momento de sua arte, empregam essa idéia de que a vida é o adversário a levar à lona, mas é ela que, em geral, nos nocauteia.
Não é esse senão o assunto do conto Kid Foguete no matadouro, de Bukowski. A vida é uma luta, e ela começa no “pátio de recreio das escolas americanas”; se o sujeito começou perdendo ali, será um perdedor por toda a sua medíocre existência: “na América a gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso aprender a lutar por ninharias, sem discutir”.
Hemingway desenvolve a idéia do pugilismo como metáfora da condição humana, e o pior dos socos é o de um lutador canhoto. No entanto, o “maior pugilista canhoto de que já se teve notícia é mesmo a vida”...
Izzo, com um olhar em Hemingway e outro na predileção francesa por uma literatura de idéias, afirma: “A vida não era nada além de uma sucessão de rounds”. Dar socos e aprender a levar socos, agüentá-los.
Pois o lutador Randy Robinson, o Carneiro, aprendeu que os golpes da vida são mais certeiros.
Foto: Mickey Rourke em cena de O lutador , de Darren Aronofsky.
7 comentários:
Um texto contundente,vida adversária diaria.simplismente não se acostumamos com isso e buscamo adversários externos...
Belíssimo filme, Mayrant, que verei outras vezes como se fosse a primeira. Não sei de outro ator que incorporasse tão naturalmente um personagem como esse M. Rourke. E a opção do diretor em seguir atrás os passos - pesados, agônicos - do protagonista com a câmera, em várias sequências, deixou para o espectador a angustiante tarefa de "sentir" as expressões de cansaço, dor e desespero d'O lutador. Sequências admiráveis, como a que Randy se prepara para o trabalho no supermercado tendo ao fundo o áudio típico de uma entrada no ringue; e aquela que encerra o filme, absolutamente perfeita, que deixa o espectador suspenso no transe de vida e morte que, por uma centelha de tempo, também é dele, espectador. Um grande filme, um grande desempenho dos atores, embora a Marisa Tomei tenha atuado bem melhor em "Antes que o diabo saiba que você está morto". Aposto em Rourke para o Oscar de melhor ator. Abr. (carlos)
Evoco Rilke (citado por James Salter): não existem turmas para iniciantes na vida, somos obrigados a enfrentar as coisas mais difíceis logo de cara.
No mais, você e Carlos são uns sortudos. Isso sim, outro nocaute. Aquele abraço.
Fiquei com vontade de ver o filme. Certamente não seria uma escolha natural, pensando apenas no título e no personagem principal, um lutador.
A vida é bem assim, queremos vencer sempre. E fomos programados a pensar a vitória apenas na primeira colocação. O segundo lugar é colocado quase que em par com o último lugar. Passamos os dias comparando, é atraves da comparação que definimos o que é melhor, maior, vitorioso.
Agora pensando além do tempo e da vitória presente.
O que é mais importante vencer? Um jogo, uma competição, num emprego??? Não sei, estas conquistas são parte de um grande cenário de lutas e conquistas. O que é mais importante, vencer uma batalha ou a guerra? Se respondermos a guerra, então a verdadeira vitória é a da vida, e não das etapas da vida.
Ainda mais além... o que é vencer na vida? o que é perder na vida?
Ahhhh, assunto longo! Impossível comentar num post de poucas palavras.
Falando em post, tem um sobre o seu livro no meu blog. Passa lá!
Ah, em tempo, recebi o livro esta semana!!! Que honra! Obrigada, já estou lendo, devorando!
Coloquei um dos seus textos no meu blog.
Beijo.
Mayrant, não vi esse filme, mas assisti O Leitor. Você já vi? Excelente, imperdível.
um abraço,
Vi sim e recomendo. E ainda mais o livro, que li na primeira edição, da Nova Fronteira. Saiu uma nova, pela Record. Abraço!
Mayrant,
Fui ver o filme.
Não é um suuuper filme.
Mas tenho que confessar que me tocou.
Seja pela face de Mickey Rourke, deformada que foi por suas escolhas, ou pela proximidade dele com o personagem. Seja pela realidade da vida como a mais dura pugilista, seja pela proximidade do personagem e sua filha com minha história pessoal, saí bastante tocada mesmo. Mexida.
É um filme que nos obriga a questionar o SE.
Como alguma coisa poderia talvez ser diferente??? Há no entanto uma questão subliminar, para mim. Na escolha de um brutal faz-de-conta, não se fez, já, a escolha pela derrota pro grande adversário???
Postar um comentário