"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 23 de novembro de 2008

A MULHER QUE PASSA

Um dos mais recorrentes motivos da literatura ocidental é o da mulher que passa (não importa se no espaço ou no tempo). A mulher apenas entrevista, por uma fresta, um instante, uma quase-miragem e, no entanto, jamais esquecida. Foi um tema por demais caro ao Romantismo, que o exauriu e popularizou, e igualmente à Modernidade, que o transformou num símbolo de nossa incapacidade de dominar a realidade, sempre intangível, imponderável, volátil – densa ao nível do impreciso.
Muitos foram os poetas que cantaram a sua mulher desconhecida, passageira do instante e do acaso: Murilo Mendes, Bandeira, Vinícius e, se não me engano, Drummond. No âmbito do idioma castelhano, um de seus maiores cantores foi o espanhol J. M. Fonollosa, com pelo menos uma dúzia de poemas dedicados às belas viandantes nova-iorquinas, arrolados no volume Ciudad del hombre: New York. Até Orson Welles, no cinema, se rendeu ao mistério da femme inconnue: em Cidadão Kane, há uma seqüência em que um dos personagens segreda ao jornalista a história da mulher entrevista por ele no cruzamento de duas barcas à saída do porto, mulher pela qual se apaixonou e, mesmo passados tantos anos, jamais esqueceu...
Também a mim aconteceu de perpetrar um poema à mulher furtiva e alheia – não sem o temor de parecer repetitivo e, assim, fracassar duplamente:

A MOÇA DE PRETO

A moça de preto que lancha na lanchonete
É magra e tem pernas de graveto.
O salto muito alto e as roupas justas deixam-na
ainda mais magra.
Claro que as gordas não a suportam.
Claro que os homens a desejam.
É o que ela nos diz quando morde seu lanche
E não menos quando bebe sua Coca.
De sua enorme bolsa – também preta –
O que ela tira quando se apaixona?
Qual o seu segredo quando solta aqueles cabelos?
São mais – ou menos – felizes os que a viram por inteiro?
É com este mistério que a deixo...

4 comentários:

Anônimo disse...

E é com este mistério que passamos. Um recorte memorável. Aquele abraço. T

Silvestre Gavinha disse...

Belo texto e muito bom o poema.
Concordo que é um tema delicioso, esse do momento fugidio que invoca a fantasia...
Com certeza bem conheces este que tanto gosto.
Claro, tradução encontrada na net.
Não é a mesma da edição que tenho. Mas gostei mesmo assim. Lembrei imediatamente.
Grande abraço,
Bom domingo.
Marie

A uma passante

A rua em derredor era um ruído incomum,
longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala o frenesi que mata.

Um relâmpago e após a noite! — Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
So te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado — e o sabias demais!


Charles Baudelaire
(Trad. Paulo Menezes)

aeronauta disse...

Poema perfeito, Mayrant!

Anônimo disse...

Amei. Muito bacana. Parabéns!