Certa vez, durante uma entrevista, o jornalista me fez duas perguntas em uma, talvez para economizar tempo ou porque já estivesse de saco cheio de minhas respostas – um tanto quanto evasivas – ou porque, afinal, as fazia a um autor sem muita relevância ou de relevância meramente local, no bairro, na Província: 1) o que é literatura e 2) que texto eu gostaria de ter escrito. Respondi assim:
“No belo conto de espionagem A dupla armadilha mortal, de Roberto Arlt, há um trecho memorável, que é ao mesmo tempo cinema (ação), metáfora (sentido) e filosofia (especulação). Uma espiã salta do avião, mas o pára-quedas não funciona, pois alguém sabotou-lhe as cordas. Arlt conclui o episódio de maneira sintética e terrível: ‘Estela era agora um ponto negro no vale profundo, e já não caía mais’.
“A um leitor atento tal fragmento faz recordar este verso de Rilke: ‘Olha em redor: cair é a lei geral’. Em ambas as situações ‘cair’ é ‘cair’ mesmo – deslocar-se sem força própria, por apelo da gravidade, de um ponto mais alto para outro mais baixo –, mas é igualmente ‘viver’ e ‘morrer’. Os três verbos estão lá, num único apenas, que remonta à idéia de outono, de vida que se desprende das folhas que caem em direção à morte iminente, com o inverno que chega...”
Não sei se o jornalista compreendeu, nem como o compreendeu. A verdade, porém, é que na edição final da entrevista sua pergunta não estava lá, nem obviamente minha resposta.
4 comentários:
Mayrant,
Você sempre com suas finas ironias...
Adorei!
Bjs
Evocando Belmonte: o fim do caminho para o bom jornalismo. Vale cultivar resíduos de esperanças? Aquele abraço e parabéns pelo texto. T
Acho que esse é o problema com as entrevistas... a questão do enunciado enunciado e o recebido, que se multiplica. Pena de quem leu a matéria no jornal, bom para nós que recebemos teu texto,tua fina ironia, tua filosofia.
Grande abraço
Marie
Concordo com Renata: você e tuas finas ironias. Adoro isso, não é por outro motivo que sou fã de Machado de Assis. Não adiantou o jornalista ter cortado a tua resposta, afinal, temos o "não leia!" Quanto ao conto citado, lembro-me que você leu numa oficina de contos policiais, na UEFS. Ainda o tenho aqui em minhas pastas. O final é surpreendente! Adoro isso também. Grande abraço.
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