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Certa vez perguntei a um especialista em filmes de bangue-bangue sobre um filme a que eu tinha assistido na infância e do qual gostara muito: Céu amarelo. Sem hesitar, o sujeito me garantiu que o filme não existia:
“Conheço todos os filmes de faroeste e nunca ouvi falar desse...”
A resistência veemente do sujeito me obrigou a procurar, por mim mesmo, alguns livros sobre o assunto, nos quais eu pudesse encontrar qualquer referência ao tal filme. Não foi difícil: o primeiro que abri evidenciou que eu estava certo. Céu amarelo não só existia como era considerado um clássico do gênero, dirigido por um de seus mestres incontestáveis: William Wellman.
2
Um episódio inverso, creio, me fez tomar gosto pelo conhecimento e buscá-lo, embora sem desespero: quando adolescente eu lia muito e sempre estava com um livro diferente enfiado entre os cadernos e livros de escola. Então, uma tarde, um garoto de outra turma e que eu só conhecia de vista me viu com um romance de Pasolini.
“Pasolini? O cineasta?”, perguntou, com um indisfarçável tom de admiração.
Naquela época eu não sabia quem era Pasolini e só havia apanhado o livro na biblioteca pública por causa do título, atraído pelo mistério da frase: A hora depois do sonho. No entanto, daí por diante não me deixei mais apanhar ou surpreender. Pasolini logo se tornou para mim um cineasta dos mais freqüentes e instigantes. E foram bem poucas as vezes, desde então, que alguém me falou de algum artista importante sem que eu o conhecesse, ao menos de referência.
3
Examinando superficialmente os dois episódios, me dou conta de que ambos representam modelos de professor. O primeiro é aquele que, do alto do seu conhecimento, desdenha o que não conhece; e o segundo, aquele que, mesmo ciente de que sabe, compreende que pode saber ainda mais, e que o conhecimento nos chega pelas mais estranhas vias: pela ação inconsciente de um neófito, por exemplo. Os dois, no entanto, despertaram em mim a fúria pelo saber, e a eles sou grato, pois, a um só tempo, me tiraram do embotamento e me fizeram ver que não somos senão o receio do outro ou o seu fantasma.
Imagem: cartaz do filme Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray. Um faroeste feminista cultuado por cineastas como Truffaut, Scorsese e Almodóvar. A canção homônima que embala a trama é de Peggy Lee, interpretada por ela mesma, que diz: "Jamais houve um homem como Johnny Guitar".
7 comentários:
"não somos senão o receio do outro ou o seu fantasma".
Nada mais precisa ser dito.
Basta,
Eu sou o receio de você, às vezes.
Mas nunca fantasma.
Seria, caso não tivesse um recurso a mais que a cópia. Acredito nisto, sim, e alguém pode me contradizer, mas ainda acredito.
Poxa, Mayrant, que belo texto.
Por extensão, também sou grata a esses episódios que ajudaram a torná-lo esse mestre maravilhoso que nos apresenta uma literatura outra todos os dias.
E era esse "receio do outro" que nos fazia buscar sempre mais em suas aulas.
Muito bom o texto, coisa boa de se ler de manhã cedo.
Abraço.
Mayrant,
Há uns cinco anos atrás, eu estava conversando com dois conhecidos e eu comentei que tinha adorado um filme chamado Amor à flor da pele. Na ocasião, recebi um comentário de aprovação (um tanto surpreso) de um deles e fiquei muito orgulhosa. Sabe quem eram esses "conhecidos"? Você e Lúcia. Foi você o autor do comentário elogiativo do meu conhecimento cinematográfico. Não fui sua aluna, mas o tenho como mestre.
Abraços,
Renata
Tenho uma dívida com você, meu amigo, e não cansarei de pagá-la. Aquele abraço.
Mayrant, não me canso de repetir: aprendi e continuo aprendendo muito com você! Não tenho dúvidas: você é o meu maior exemplo de professor! Sou privilegiada em ter tua amizade! Abraço!
O verdadeiro cinéfilo, assim é se me parece, é aquele que sempre foi ao cinema, que sabe buscar, nos arcanos de sua memória, velhos e desconhecidos filmes. Minha formação cinematográfica, por exemplo, nos idos dos anos 50, quando comecei a frequentar as salas de projeção, foi feita pelo bom e saudável cinema de gêneros americano, pelos westerns ("Céu amarelo", com Gregory Peck, vi no autêntico Guarany), pelos musicais, pelos 'thrillers', pelos épicos históricos ("Spartacus", visto aos 11 anos, marcou-me profundamente), pelos filmes de aventuras (quem, de sã consciência, pode esquecer de "As aventuras de Robin Hood", 1936, de Michael Curtiz, com Errol Flynn?) etc. Na adolescência é que vim a compreender que o cinema também era uma expressão da arte no contato com a programação do Clube de Cinema da Bahia.
Percebo, hoje, que os ditos cinéfilos da nova geração não possuem 'fortuna' filmográfica e ficam restritos aos filmes 'da moda', aqueles que estão 'in'. Uma nova modalidade que anda a surgir: "os cinéfilos festivos", que pensam que o cinema começou com "Blade Runner, o caçador de andróides", isto é, a base referencial desses festivos cinéfilos vai, no máximo, aos anos 80.
Por outro lado, o cinema se transformou com o advento de novos suportes, a mudar a recepção do filme, antes exclusivo às salas escuras e para se ter contato com as imagens em movimento era necessário se pagar um ingresso para adentrar a sala exibidora.
Seu comentário está excelente é extremamente revelador.
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